«Sou filho da África colonial, de Coimbra e da Beira-Baixa»
José Afonso, 1983
1933 - Vapor Mouzinho - A caminho de Angola. O pai é procurador da República na Comarca de Silva Porto
"Havia uma chaminé, uma amurada e um convés.
Era um barco a vapor, está bem de ver. Ronceiro, ainda a cheirar à revolução industrial. Adornava, da proa à ré, consoante a vaga. Tropicalizava-se o Atlântico, a cada milha navegada. A carreira do costume, da metrópole às colónias, nos anos trinta. A bordo, seguia um miúdo de calções. Zeca Afonso, a roçar os 3 anos. Sozinho, naquele lençol oceânico, que cobria, sabe-se lá, que assombros, que mostrengos. Instalada em Angola, a família mandara-o vir de Aveiro. Retirado do aconchego caseiro de primas e tias maternas, embarcou neste seu baptismo naval, entregue a um tio afastado, recém-casado, mais atento aos recolhimentos da lua-de-mel do que ao puto de calções. Com tanto de aflito como de desamparo, ancorou-se na mão de um velho missionário, o "homem das barbas brancas", de quem nunca mais se há-de esquecer (Prosema II) .
«Por razões de saúde, diz Zeca Afonso, meus pais que estavam em Aveiro, deixaram-me ao cuidado do tio Chico (republicano e anticlerical) e da tia Gigé ali numa casa situada na Fonte das Sete Bicas (...). A minha mãe pediu ou exigiu que eu fosse enviado para África ao cuidado de um tio-advogado que seguia para Angola. Eu tinha três anos e meio. O tio ia em lua-de-mel, não me ligou nenhuma e desapareceu. Encontrei-me no barco - o "Mouzinho" - abandonado e, durante toda a viagem agarrei-me a um missionário, que ainda hoje recordo nos meus sonhos e foi praticamente a única pessoa que me prestou atenção»
O irmão, João Afonso, dois anos mais velho, na biografia "fraternal" que escreveu, haveria de iniciar a narrativa de uma vida, com o levantar de âncora do Mouzinho, e com aquele deambular pelo convés do pequeno navegador solitário. Convencido, diz, de que "Zeca bebeu aqui, nesta infância remota de embarcado alguma coisa do seu vezo de andarilho". E acrescenta: "Zeca tem a divagação no sangue, é um espírito nómada, espartilhado entre as quatro paredes deste nosso espaço sedentário, comprimido contra o oceano." Daí aquele seu ar abstracto, o seu temperamento aéreo, a sua propensão errante, o seu aparente desprendimento, o desassossego "de embalar a trouxa e zarpar ". "Dessa sorte de navegar, no mar ou em terra, se embeberam as suas canções, numa obsessão inconsciente." "O Zeca era um génio. Não gosto de empregar esta palavra levianamente. Somos todos geniais. Pois. Mas o Zeca era 'mesmo' genial. E muito queria que isto não fosse um consenso mas um dado adquirido.
Fontes e textos: José Afonso "Cronologia da Vida e Obra; "Livra-te do Medo" - José A. Salvador; "Os Lugares de Zeca Afonso - Visão e "África em Zeca Afonso"
José Afonso, 1983
1933 - Vapor Mouzinho - A caminho de Angola. O pai é procurador da República na Comarca de Silva Porto
"Havia uma chaminé, uma amurada e um convés.
Era um barco a vapor, está bem de ver. Ronceiro, ainda a cheirar à revolução industrial. Adornava, da proa à ré, consoante a vaga. Tropicalizava-se o Atlântico, a cada milha navegada. A carreira do costume, da metrópole às colónias, nos anos trinta. A bordo, seguia um miúdo de calções. Zeca Afonso, a roçar os 3 anos. Sozinho, naquele lençol oceânico, que cobria, sabe-se lá, que assombros, que mostrengos. Instalada em Angola, a família mandara-o vir de Aveiro. Retirado do aconchego caseiro de primas e tias maternas, embarcou neste seu baptismo naval, entregue a um tio afastado, recém-casado, mais atento aos recolhimentos da lua-de-mel do que ao puto de calções. Com tanto de aflito como de desamparo, ancorou-se na mão de um velho missionário, o "homem das barbas brancas", de quem nunca mais se há-de esquecer (Prosema II) .
«Por razões de saúde, diz Zeca Afonso, meus pais que estavam em Aveiro, deixaram-me ao cuidado do tio Chico (republicano e anticlerical) e da tia Gigé ali numa casa situada na Fonte das Sete Bicas (...). A minha mãe pediu ou exigiu que eu fosse enviado para África ao cuidado de um tio-advogado que seguia para Angola. Eu tinha três anos e meio. O tio ia em lua-de-mel, não me ligou nenhuma e desapareceu. Encontrei-me no barco - o "Mouzinho" - abandonado e, durante toda a viagem agarrei-me a um missionário, que ainda hoje recordo nos meus sonhos e foi praticamente a única pessoa que me prestou atenção»
O irmão, João Afonso, dois anos mais velho, na biografia "fraternal" que escreveu, haveria de iniciar a narrativa de uma vida, com o levantar de âncora do Mouzinho, e com aquele deambular pelo convés do pequeno navegador solitário. Convencido, diz, de que "Zeca bebeu aqui, nesta infância remota de embarcado alguma coisa do seu vezo de andarilho". E acrescenta: "Zeca tem a divagação no sangue, é um espírito nómada, espartilhado entre as quatro paredes deste nosso espaço sedentário, comprimido contra o oceano." Daí aquele seu ar abstracto, o seu temperamento aéreo, a sua propensão errante, o seu aparente desprendimento, o desassossego "de embalar a trouxa e zarpar ". "Dessa sorte de navegar, no mar ou em terra, se embeberam as suas canções, numa obsessão inconsciente." "O Zeca era um génio. Não gosto de empregar esta palavra levianamente. Somos todos geniais. Pois. Mas o Zeca era 'mesmo' genial. E muito queria que isto não fosse um consenso mas um dado adquirido.
Fontes e textos: José Afonso "Cronologia da Vida e Obra; "Livra-te do Medo" - José A. Salvador; "Os Lugares de Zeca Afonso - Visão e "África em Zeca Afonso"
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