sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Homem

Com a devida vénia transcrevo este depoimento de José Querido sobre Zeca.

O Homem

Eu não tinha mais de seis anos. Era um Verão qualquer de meados de 60. Tínhamos uma casa na Praia de Faro, emprestada. A casa do Sr. Freitas — acabam de me recordar as minhas queridas irmãs. Havia um gira-discos a pilhas e candeeiros a petróleo. Eu vinha da água roxo, depois de horas incansáveis a mergulhar das pontes, com a Irmã Mais Nova. Eu não sabia nadar bem, mas usava braçadeiras insufláveis e com elas aventurava-me fosse para onde fosse, mesmo sem pé. À noite, depois do jantar, ouvíamos música. Otis Redding. Charles Aznavour. Coisas que os adolescentes da altura (os meus irmãos e primos) ouviam. E também Adriano Correia de Oliveira. E Zeca Afonso.

É a minha primeira recordação de José Afonso. Uns anos mais tarde, mas não muitos, lembro-me de estarmos na sala de estar e alguém toca à campainha (coisa comum, vivíamos numa pensão). Subitamente o meu irmão corre a tirar do prato do gira-discos o 33 rotações que estávamos a ouvir:

Recordo-me lindamente da capa. Que não da música: eu teria uns 8, 9 anos. Perante o sururu, devo ter feito uma pergunta de puto e deram-me uma resposta básica, para puto entender: havia coisas que não se podiam ouvir, eram proibidas pela polícia, pela PIDE, e aquela era uma delas. Os porquês eram demasiado complexos para mim, muito puto. Mas aquilo encaixava em duas coisas: eu não gostar de polícias, porque o polícia de giro parava sempre os nossos jogos de bola na rua, e já ter ouvido nas conversas da tasca (tínhamos uma "casa de pasto" abaixo da pensão, é hoje um bar na famosa Rua do Crime, em Faro, que na realidade, irónica, se chama Rua do Prior) que havia um viajante (pensão e tasca eram frequentados sobretudo pelos caixeiros viajantes) que era informador da PIDE, fosse lá isso o que fosse, e o meu pai tinha ido responder qualquer coisa à PIDE uma vez. O meu pai era um homem absolutamente de Direita e cumpridor, embora houvesse coisas do Salazar que ele não gostava muito: não imagino porque terá lá ido.

A minha Irmã Mais Velha foi aluna do José Afonso em Faro, onde ele deu aulas. O meu Irmão também. Na então chamada Escola Industrial e Comercial de Faro. Ela recorda-se de um «mau professor, que faltava muito e era despistado. Não seguia o programa, falava de outras coisas». Certo e sabido era que por alturas de Abril ele ia faltar, pelo menos um mês. Os alunos sabiam porquê, recorda essa minha Irmã:

«com o aproximar do 1º de Maio, a PIDE ia lá e engaioláva-o durante um mês».

O meu Irmão não partilha da mesma opinião dele como professor, talvez por ser já na altura mais politizado e, digamos, avançado que ela.

Quando deixámos a Pensão Mirense (onde nasci) que foi a seguir pensão de ***** e mais tarde o primeiro Lar de Estudantes da Associação da Universidade do Algarve (está à venda, decrépita, fica por cima do bar Ovelha Negra), surripiei a colecção "Vida Mundial", onde ele se informava na altura. (Ainda tenho a capa do Homem na Lua.) Ontem o meu Irmão recordava, com alguma emoção, como o professor «usava os sapatos desatados». E «faltava para ir fazer as gravações em França».

Eu conheci José Afonso em circunstâncias muito diferentes. Muitos discos, prisões, revoluções depois. Em 1985/86. Conheci-o em circunstâncias no mínimo estranhas, num apartamento em Faro, na presença do então director do Tal & Qual, José Rocha Vieira, e do meu camarada jornalista Francisco Rosa, que tinha uma Dyane onde o Guilherme Silva Pereira fazia o Gagarine (sair por uma janela, passar pelo tecto e entrar pela janela oposta — em andamento). O Guilherme foi depois capa do Tal & Qual por causa duma cena qualquer. Era (acho que ainda é) uma figura controversa...

Zélia acompanhava José Afonso. Era um homem doente. Ajudávamo-lo a andar pegando-lhe por debaixo dos sovacos. Tinha um olhar absolutamente sereno. Conversava com brilho. Em voz pausada, por causa do esforço. Mas com inteligência e perspicácia.

Dias depois visitei-o na casa de Azeitão. Conversas soltas. Eu era personagem secundária no cenário. Lembro-me das estantes vergadas com o peso de centenas de livros. Conheci a Joana Afonso, filha dele (que entrevistei mais tarde para um pasquim chamado "O Rebelde" que foi percursor das revistas para adolescentes).

Lembro-me de um homem admiravelmente consciente da proximidade da morte e ainda assim um homem sereno, tranquilo. Forte. Estar junto de José Afonso era estar mergulhado numa paz activa, estimulante. Quando falava era um sábio. É essa a imagem que retenho dele: uma pessoa sábia, consciente das realidades do mundo, nada interessado em falar dele ou da doença, mas sim da actualidade. Com notável perspicácia, algum humor e um belo poder de antecipação das tendências sociais e políticas.

O José Afonso que eu conheci não é o Zeca Afonso comunista, não é o Zeca Afonso perigoso revolucionário, não é o Zeca Afonso maldito, aparentemente malquisto e incómodo, até hoje, à Esquerda e aos partidos que ajudou dando a cara por eles, mesmo que não lhes pertencesse (o José Afonso nunca pertenceu a nada senão à cultura portuguesa e ao povo português). Era uma pessoa que dava gosto conhecer, com quem dava gosto estar e conversar. Um pessoa de bom fundo e carácter vincado com opiniões sábias e nada extremas, bem pelo contrário.

Este "meu" José Afonso não tem também nada a ver com a "malta de Esquerda" desses tempos que, em período final do cavaquismo, desistiu de lutar pelos seus ideiais. O capital é mais forte, desisto: onde está o bom emprego, onde posso ir beber uns copos? O "meu" José Afonso, não fora a doença, teria continuado a lutar pelos seus ideais noutro palco. Um palco qualquer. Um palco onde ele fosse preciso. Há menos de um ano tive o grato prazer de conhecer alguns dos que não desistiram. Continuam a luta nos foruns prisões, associações, escolas, etc a defender os direitos individuais, a sensibilizar e educar as pessoas nos seus direitos e deveres. Quando conheci o António Pedro Dores lembrei-me do José Afonso e de pensar: é a mesma força. Há gente que não desiste de ser melhor e fazer os outros melhores. Ainda bem.


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