sábado, 27 de fevereiro de 2021

Carta de Sérgio Godinho

s/d e falta a parte 2

"Imaginem o sal não dissolvendo na água, a água do rio atravessando incólume o mar, o vento transformando a roupa no escuro, mudando-lhes as cores, aproveitando a ausência da luz plausível. Imaginem também a luz e um músico recebendo a energia da luz, transformando-a em ritmos, e nos ritmos ia pondo as palavras que mais tarde tomamos por nossas.

Sempre achei o Zeca um músico iluminado, daqueles que recebem, junto com o dom de viver, o dom de criar. Mais do que um músico iluminado, o Zeca era uma pessoa iluminando-se: tinha uma lucidez crua e desvastante que, dito por outras palavras, quer dizer que era um malandro. De dentro da sua cabeça, saíam dois feixes de lucidez e malandrice: ria-se com os olhos,

(...)

e aspirar, já agora, a uma bonança futura. O homem não tinha emenda. Teve que vir o raio de uma doença tentar, perversamente, pô-lo em sossego, comendo-lhe o corpo e a energia. Da última vez que o vi, ainda se ria com os olhos, já pouco. O barco serenava. Mas não faz mal. José, sossega lá. Nem tu sabes o que nos deixaste.

Deixa lá, sossega agora!"

Sérgio Godinho

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

"Menino d'Oiro"

Diz Zeca sobre este tema:

"O tema parece filiar-se em longínquas raízes peninsulares. Tratado pelas mais diversas formas mas conservando a sua origem popular, surge como motivo inspirador dum conhecido fado de Coimbra." (1)

Naturalmente que o fado de Coimbra que inspirou Zeca foi o conhecidíssimo "O Meu Menino" musicado por Alexandre Augusto de Rezende Mendes, com letra: 1ª quadra popular; 2ª quadra de Alfredo Fernandes Martins e que conheceu várias alterações de letra durante os decénios seguintes.

"Rezende compôs este embalo em homenagem a seu filho, José de Sousa Mendes de Rezende que nas décadas de 1950-1960 era conhecido na colónia portuguesa de São Paulo por “Menino d’oiro”. (...)

No período 1958-1961 José Afonso faz frequentes viagens a Coimbra. Pernoita em repúblicas de estudantes e faz-se acompanhar pela viola de cordas de nylon de Paulo Alão. Canta o seu repertório em repúblicas e faz serenatas na porta do Patronato Feminino da rua da Matemática, fronteiro à república Corsários das Ilhas, acompanhado pela viola nylon de Paulo Alão. É neste período que José Afonso compõe Balada do Outono (1958), Menino d’Oiro (1959), Minhã Mãe (1959), Senhor Poeta (1960), e Balada Aleixo (1961), Canção vai… e Vem, trauteando a Paulo Alão os arranjos que tinha em mente para cada título, arranjos esses que mais tarde serão retomados nas gravações com José Niza/Durval Moreirinhas (1961) e Rui Melo Pato (1962 e ss.). Ainda segundo Paulo Alão, o repertório baladístico inicial de José Afonso foi muito mal recebido pela Academia de Coimbra em geral, sobretudo por estudantes anónimos que não estavam preparados para apreciar as novas formas, temas e sonoridades." (2)

Nunca em nenhum lado em que tenha sido entrevistado, Zeca refere que seria uma homenagem sua ao seu primeiro filho José Manuel, que teria na altura que Zeca fez a letra (1959), 6 anos.

Essa relação aparece somente no livro de Viriato Teles - "As Voltas de um Andarilho" - pag.ª 148.

Em 1960, Casimiro Ferreira, no seu disco 'FADO CORRIDO DE COIMBRA' (Rapsódia - EPF5084) deu a indicação nos créditos, que os autores de "O Meu Menino" eram com a música de Alexandre de Resende (certo) e a letra de José Afonso. Mas o que gravou Casimiro Ferreira foi a versão original com os versos popularizados desde o princípio do século XX (3). O meu menino é d’oiro/É d’oiro o meu menino,/Hei-de levá-lo ao Céu/Enquanto for pequenino e não a versão de Zeca Afonso, gravada em 1962, como todos o sabemos, com o arranjo magistral de Rui Melo Pato.

Como aparece como autor da letra José Afonso, em 1960? Tal como apareceu em 1953 no "Fado das Águias", atribuída ao Zeca a música e letra, quando a música é de João Salustiano Monteiro e a letra de Camilo Castelo Branco (1ª quadra), Fernando de Lemos Quintela (2ª quadra). Uma evidente falta de rigor.

fotos: Capa e disco, onde nele refere como autor da letra, José Afonso.

Fontes:
(1) - Cantares - Nova Realidade
(2) - Guitarra de Coimbra V (Cithara Conimbrigensis)
(3) - O Covil do Vinil

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Carta de José A. Salvador

De Rui Pato

JOSÉ A. SALVADOR

O Salvador foi meu colega em Coimbra e fez parte do meu grupo nas lutas académicas de 1969 tendo depois seguido o jornalismo. Salvador foi o primeiro biógrafo do Zeca Afonso com o livro "LIVRA-TE DO MEDO - Histórias & Andanças - Zeca Afonso" publicado no ano de 84. Para esse livro foi pedida a minha colaboração e foram várias as tardes e noites de conversa, até porque eu tinha ainda a memória muito fresca dos tempos em que andei nas andanças com o Zeca.

Em 1987, com o Zeca já muito doente, o Salvador decide fazer uma segunda edição do livro mas com mais elementos, mais atualizados, com mais entrevistas com o próprio Zeca. E é por esse motivo que o Salvador decide escrever à minha mãe, aconselhado pelo Zeca, para que ela lhe facultasse alguma da correspondência escrita entre o Zeca e o Rocha pato (meu pai) ao que ele respondeu afirmativamente. É essa a carta que aqui reproduzo.

Salvador vem a falecer precisamente há 5 anos, em Fevereiro de 2016. É a minha homenagem a esse grande amigo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Presidenciais de 1986

Hino de Soares provoca protesto de José Afonso*

Nas eleições para as presidenciais de 1986 um dos temas utilizados pelo MASP**, foi a música de Zeca «Natal dos Simples» com a letra alterada, o que provocou de Zeca uma posição contra a utilização abusiva da sua música e dar conta da sua estranheza pelo facto de a pretexto da esquerda ir votar contra Freitas do Amaral, terem utilizando a sua música de forma puramente programática, sem me darem qualquer justificação. Não pretendo obviamente, levar este caso para um confronto judicial ou qualquer coisa parecida, mas não posso deixar de protestar perante esta atitude, vinda de um «staff» que se atreve a colocar trabalhadores como os da Marinha Grande, sem salários ou com empregos ameaçados, ao nível de fascistas.

Tanto mais que eu apoiei uma candidatura, a de Maria de Lourdes Pintasilgo, que nunca se aproveitou abusivamente das minhas canções. Por outro lado também sei que, embora não goste do candidato Mário Soares, para evitar a eleição da «Tatcher de calças» (Freitas do Amaral) não me resta outra hipótese senão votar nele.
(1)

A letra do 'Natal de Simples' era assim em 1986

"Vamos votar nele, vamos notar nele
Vamos votar
Para Presidente, para Presidente
Mário Soares"

Em 1991 na reeleição de Mário Soares o MASP volta à carga:

"Vamos votar nele, vamos notar nele
E quando votares
Volta à Presidência, volta à Presidência
Mário Soares" (2)

Mas, nessa altura, Zeca já cá não estava!

* in Se7e, 11 de Fevereiro de 1986
** MASP - Movimento de Apoio à candidatura de Soares à Presidência
(1) As Voltas de um Andarilho - Viriato Teles
(2) Enciclopédia de Cromos - Paulo Neto

Zeca com Maria de Lourdes Pintasilgo - vídeo

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

José Afonso: Uma obra intemporal

José Afonso viveu, empenhado e generoso, boa parte do século XX português. Ajudou a transpor a fronteira da ditadura para a democracia. Ergueu a voz contra o fascismo, solidarizou-se com a luta dos povos coloniais pela independência nacional. Sofreu perseguições, passou pelas cadeias políticas, resistiu e incentivou todos os que se opunham à ditadura.

Cantou a liberdade e a utopia, quis torná-la realidade. Juntou a sua voz às múltiplas vontades colectivas, às esperanças inflamadas que se levantaram no período revolucionário de 1974-75. Foi alavanca da resistência quando os cravos começaram a murchar, inconformista e insubmisso, internacionalista convicto. A sua voz nunca deixou de se erguer contra o medo, a repressão ou a indignidade. A sua obra e a sua acção projectam-se hoje, intemporalmente.

Daqui:
https://ocprotesto.org/dossier-tematico-2/

Crónica de Rocha Pato

Esta é a crónica, escrita e publicada por Rocha Pato no jornal "O PRIMEIRO DE JANEIRO" de 30 de Outubro de 1962, em que é contada a verdadeira epopeia que foi conseguir um local em Coimbra onde se pudessem fazer gravações para editar em disco (EP). O repórter descreve ao pormenor como foram aquelas duas tardes em que num dia gravou o José Afonso comigo ("Baladas de Coimbra") e posteriormente, no mesmo local, para a mesma editora, o Barros Madeira com o Brojo, o Portugal e o Moutinho ("Balada Da Saudade")

O recorte do jornal tem 59 anos, está um pouco gasto e amarelecido...mas constitui um belo documento.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Autobiografia

As minhas primeiras veleidades de cantor surgiram quando andava no 6º ano do liceu. As noites passava-as em deambulações secretas pela cidade, acompanhado de meia-dúzia de meliantes da minha idade, amantes inconsequentes da noite. Com uma guitarra e uma viola fazíamos a festa. Estávamos ainda longe do hieratismo triunfal das serenatas na Sé Velha diante de multidões atentas e respeitosas. O velho Flávio Rodrigues continuava a ser o «Mestre», venerado por um pequeno discipulado de guitarristas e acompanhadores que com ele se reuniam numa pequena casa do bairro de Celas onde acabou os seus dias minado por uma doença fatal.

Do convívio com esse homem torturado (Flávio Rodrigues) ficou-me a recordação de uma instabilidade impotente e resignado ao peso de terríveis limitações materiais que acompanharam até ao fim o lento processo destruidor do nosso companheiro.

Seguiu-se um período de promoção fadística em que acabaram por me colocar no palanque das estrelas de primeira grandeza. Outros acompanhadores (peritos e sisudos) e outras oportunidades em viagem promovidos pela TUNA e pelo Orfeon. São dessa época as minhas idas a África e as tournées através da província. Recordo-me de ter participado na inauguração duma auto-maca, para os bombeiros voluntários de Pádua e e de, por diversas vezes, ter dormido ao relento nos "pinhais do rei.

Nestas andanças percorri as estradas do país esticando o polegar a quem passava sobre rodas, ou, mais afortunadamente, pagando com fados e canções a hospitalidade com que me recebiam em suas casas: pobres, ricos e fidalgos arruinados.

Por motivos económicos fui forçado a deixar Coimbra antes de concluir o curso e a leccionar em colégios particulares. O contacto concreto com a situação profissional no sentido mais amplo, foi-me a pouco e pouco endurecendo.

Em Coimbra as coisas mudavam lentamente. Novas remessas de estudantes, menos pitorescos mas mais conscientes do que os do meu tempo, mais devotados aos problemas que fatalmente surgiam num meio sufocado por tradição, as mais das vezes inútil, intentam, à semelhança do que já outras gerações haviam feito, romper declaradamente com o bafio, pôr de parte a quinquilharia passadista do velho romantismo do "Penedo", realizar ao nível associativo uma modernização da vida académica dentro dos limites a que os forçava o estreitamento geográfico em que viviam.

Lá longe, no Algarve, chegavam-me os ecos destes acontecimentos. Embora em doses insignificantes, e já um pouco tarde, tentei acertar o passo por esse ritmo coordenador de energias há muito desencandeadas, mas sem o sentido de oportunidade de que careciam para se converterem em acção positiva e fértil.

Nessas pequenas descobertas adquiri a noção do tempo perdido, abominei a cidade onde a minha alegria de viver inùltimente estiolara ouvindo "tanger os bordões da viola", calcorreando ruas, frequentando casas de prego, bebendo bicas nos cafés da baixa, ou escutando, mais por imposição do que por prazer, as arengas dos teóricos da bola.

Nalgumas andanças por Lisboa tomei esporádico contacto com outros meios estudantis. Rapazes novos, dinâmicos, combativos, de pés bem assentes na terra, com os quais, embora de uma forma efémera, muito me foi dado aprender. Ganhei amizades, rejuvenesci e sobretudo senti na carne a urgência de alguns problemas que até então mal tinham afectado a minha maneira de ser.

Numa disposição de espírito muito diferente do que me levara a procurar fora de Coimbra uma largueza de horizontes que a cidade me negara, renovei um pouco o meu conhecimento dos homens e dos lugares. O Algarve foi por então a minha pátria adoptiva. Nos sapais da ria de Faro e nos areais do sotavento algarvio passava eu as melhores horas do dia junto do barco simbólico que o António Barahona salvara do esquecimento e da decomposição.

Só muito acidentalmente cantei. Em casamentos, baptizados, convívios efémeros, que sei eu? Como de resto Sempre o tinha feito. As baladas surgiram como um produto anónimo desse conjunto de circunstâncias, mas, também, com o tempo, sempre um interlocutor forçoso cantava comigo. Mais do que simples forma musical vagamente lúdica ou combativa definiam uma atmosfera pré-existente nas coisas presentes e passadas. Nada mais do que um folclore de segunda ordem pronta a servir.

O Rui Pato ajudou-me nas situações de maior responsabilidade perante públicos mais exigentes ou nas gravações. Comecei a cantar o que me vinha à cabeça, nas praias do sul ou em curtas deambulações por terras de província onde ampliei, fora do ambiente universitário, as minhas experiências mais duradoiras. A mais recente pausa da minha vida (ida para Moçambique) veio cortar de uma forma imprevista as esperanças dum recomeçar.

Sem saber como, apesar das inevitáveis demoras burocráticas achei-me em Lourenço Marques com um lugar de professor. Mais umas baladas (as últimas) e uma transferência para a Beira. Novo lapso e uma última oportunidade que me veio através do TAB (Teatro dos amadores da Beira). Cardoso dos Santos empenhava-se num prazo mínimo de tempo em preparar a encenação de "A excepção e a regra" de Brecht. Faltava musicar e adaptar as canções que figuravam na tradução de Francisco Rebelo. Assim fiz. Depois disto a mudez ou a decadência. Não sei bem.

Beira - Abril de 1967 in Cantares - Edição SCIP - AA EE de Lisboa
(edição Nov/1967. O resultado das vendas foi entregue ao Zeca, nessa altura impedido de exercer a sua profissão de professor.
Informação de AP Braga)