sábado, 27 de fevereiro de 2021

Carta de Sérgio Godinho

s/d e falta a parte 2

"Imaginem o sal não dissolvendo na água, a água do rio atravessando incólume o mar, o vento transformando a roupa no escuro, mudando-lhes as cores, aproveitando a ausência da luz plausível. Imaginem também a luz e um músico recebendo a energia da luz, transformando-a em ritmos, e nos ritmos ia pondo as palavras que mais tarde tomamos por nossas.

Sempre achei o Zeca um músico iluminado, daqueles que recebem, junto com o dom de viver, o dom de criar. Mais do que um músico iluminado, o Zeca era uma pessoa iluminando-se: tinha uma lucidez crua e desvastante que, dito por outras palavras, quer dizer que era um malandro. De dentro da sua cabeça, saíam dois feixes de lucidez e malandrice: ria-se com os olhos,

(...)

e aspirar, já agora, a uma bonança futura. O homem não tinha emenda. Teve que vir o raio de uma doença tentar, perversamente, pô-lo em sossego, comendo-lhe o corpo e a energia. Da última vez que o vi, ainda se ria com os olhos, já pouco. O barco serenava. Mas não faz mal. José, sossega lá. Nem tu sabes o que nos deixaste.

Deixa lá, sossega agora!"

Sérgio Godinho

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