sábado, 27 de setembro de 2014

Prosema I

Com a devida vénia me reparto junto do tampo de mármore meu secretário tão certo. Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra? Logrei substituí-la numa manhã óptima mas não esta em que a mola salta reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise. Na confraria dos reclusos outras quimeras se aventam como Sol, Mãe, Amada, até que o tempo nosso inimigo se distancie e no abandone por instantes. A laje já sobre a qual o papel branco me obedece sem que o habitem outros sinais, pequeninos veios avolumem-se em áreas mais densas, configurando pássaros de porcelana chinesa. Afundo-me neste fundo para descobrir-lhes um sentido, branco, amarelo, de novo branco, cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se, perder-se, reagrupar-se.

De anacoreta nada tenho, só de multidões entre Cacilhas, Piedade e o Barreiro. E Campo de Ourique, que digo! A minha mão move-se, o pensamento pára, descubro as uvas pendentes como se fora Verão e o Sol ferisse como se olhara de frente. Nem um ruído de pássaros habituais junto à janela nos veio dar os bons dias, o funcionário impreterível virá à hora impreterível. Muito longe fora de portas um galo ou a sua ausência.

Tenho uma toalha, um guarda-fato, uma cama. Apalpo os objectos, configuro-os às mãos acostumadas, sento-me. Lobrigo desejos; nas veias corre sangue sem mácula devolvido à força que o agita. Chamo a mim a reserva inesgotável de Alegrias, a raiva dos oprimidos, a bondade de um homem simples com quem, às portas de Arraiolos, me embebedara num dia de sol e serra.

Caxias, 13-5-1973

P.S. - Zeca Afonso esteve detido no Forte-prisão de Caxias pela PIDE/DGS entre abril e maio de 1973.


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