"Anarquista, sonhador, poeta, Zeca Afonso colou aos oito séculos e meio de lusas tradições algumas páginas novas, com a coragem de muitos antes dele, mas com o ineditismo de que só a sua própria singularidade foi medida.
Em 23 de Fevereiro de 1987 a morte saiu-lhe à rua, (...) e nem um fragmento de memória nos separa da recordação que deixou, das frases que toda a gente conhece, da importância da sua passagem pela história que lhe foi tempo de vida.
Andarilho de palavras, aprendeu a usá-las entre europas e áfricas de pessoas e poemas.
Cantou Coimbra e transfigurou o cariz da balada, acertou-a com a sua enorme insatisfação das aceitações que o rodeavam e desenhou as diferenças em metáforas, umas subtis outras explícitas, que lhe trouxeram companheiros de estrada mas o levaram também às quatro paredes de uma cela onde aprendeu na carne a importância de ser um incómodo público.
Buscou raízes nas tradições culturais de outros povos e gentes, de África ao Brasil, ligou-as às nossas próprias e fez nascer sonoridades novas, poemadas de uma forma nunca visitada pela cultura deste areal onde não nasce a aurora.
E lá se sentava às vezes na Casa das Tortas de Azeitão, mais sozinho que o Herman que também por lá parava, sempre com papeis e um olhar distante, vazio por momentos dos amigos maiores que o pensamento que lhe aqueceram o percurso, talvez imerso em linhas que hoje todos nós já ouvimos cantadas.
Caminharam com ele irmãos de revolta, como Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Rui Pato, Manuel Freire, Alípio de Freitas, tantos que viram as portas que Abril lhe abriu serem descobertas pelo Zeca como fechadas de novo… e a utopia a continuar, a elusiva revolução de gentes e mentes a parecer uma necessidade eterna.
Era um filho da madrugada, fiel à sua moral muito própria… “eu sou o meu próprio comité central” - ele que nunca se identificou com nenhum… e tentaram conotá-lo com os comunistas, que ele nunca foi, com a LUAR, a que nunca pertenceu, até mesmo com uma estranha definição de “católico progressista”… seja o que for que isto queira dizer…
Entre “incómodo” e “perigo público”, o sistema catalogou-o ab initio como “um homem de esquerda” (esse mesmo sistema que das mudanças dá à História o ponto de vista de quem prevalece) - e o rótulo ficou, para desinformação das esquerdas e das direitas que, de resto, são designações cada vez mais misteriosas nos meandros dos seus contornos de conveniência.
Com o rótulo, secundarizou-se a dimensão do artista, do poeta, do músico, do génio que nunca poupou ferroadas, tanto às direitas como às esquerdas do seu tempo.
Porque Zeca Afonso, à procura de manhã clara, foi um libertário sem doutrina ou ideologia que não derivassem de si próprio.
Podia, em certos momentos, estar mais perto de certas posições que de outras, mas ferrava-lhes nas canelas ao menor desvio. Ninguém nunca o obrigou, mas veio para a rua e cantou… e quem de perto o conheceu, sempre trouxe outro amigo também…
Tão distraído como Einstein teve fama de ser, ele vivia numa dimensão muito sua, nem sempre em consonância com o momento e o local imediatamente presentes.
Até como professor encontrou uma forma diferente de agir e tentou, num país onde nunca houve nenhum clube de poetas mortos, estimular os alunos a pensar pelas suas próprias cabeças.
Durante 32 anos gravou discos e deixou uma obra que constitui um dos mais valiosos patrimónios da cultura portuguesa de todos os tempos.
Foi uma força da natureza, enquanto a vida lhe não faltou…
… e como não há machado que corte a raiz ao pensamento, ele alimentou a utopia que lhe deu forças até mesmo depois de as ter perdido às armas de uma coisa mais poderosa que lhe fora a PIDE, chamada esclerose lateral amiotrófica, um dos muitos fracassos das medicinas, que deixam uma pessoa lúcida mesmo quando já não consegue expressar-se…
Foi essa a última revolta, a que já não conseguiu transmitir…"
Daqui: http://freezone.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=25
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