Qual teria sido a razão de Zeca Afonso ter assinado em 1982, contrato com a Sassetti depois de 15 anos de "ligação" com a Orfeu de Arnaldo Trindade, quando tinha sido este que lhe teria dado a mão e gravado o álbum "Cantares do Andarilho" quando todas as outras editoras se tinham recusado fazê-lo?
Arnaldo Trindade
“Não conheço de facto nenhum cantor tão completo como ele [José Afonso]. Não só a voz maravilhosa como também o bom gosto, os arranjos…. Ia buscar também pessoas, foi buscar o Fausto… todos eles cantavam e ajudavam-se mutuamente esse grupo da altura… o Vitorino, o José Mário Branco e outros…” (1)
“…o responsável era o editor, nem o autor nem o cantor tinha responsabilidade nenhuma política, o editor é que tinha. Tanto é assim que eles andaram com o Cantares do Andarilho por toda a parte e ninguém quis tomar essa responsabilidade. Na altura, eu achei aquilo tão bonito, tão bonito, tão bonito (para mim o Cantares do Andarilho é o grande disco do José Afonso) “eu vou tomar a responsabilidade disto, vou para a frente”, e gravamos. Porque ele vinha do problema dos Vampiros, não era, feito na Casa Figueiredo, na Rapsódia” (2)
José Afonso escreve um postal a Albano Rocha Pato, sem data, onde escreve: “Meu caro Pato, recebi o seu postal. Preciso que me diga com a máxima urgência quais as ofertas de gravação e condições propostas. Há mais de quinze dias que prossegue uma renhida luta de concorrência comercial em que me disputam a Alvorada, a Valentim e a Tecla. Deixei o caso a um sujeito muito amigo, tipo influente e com muita experiência que é uma espécie de procurador. Tenho estado à venda por preços que vão subindo à medida que a concorrência se acentua (…)” (3)
José Afonso, em entrevista a José Salvador, diz que a escolha de gravar pela Orfeu de Arnaldo Trindade deve-se sobretudo a razões económicas, pois vivia por essa altura um período bastante complicado financeiramente, pelo que a sua decisão terá sido com base na proposta que lhe foi feita representar um “cachet superior aos outros”. José Afonso afirma então que a sua motivação para a gravação de discos passa essencialmente por necessidades económicas, pois nessa altura já tinha sido proibido de exercer a actividade de professor passando a música a representar a sua única actividade, como escreve numa carta enviada ao irmão:
“Presentemente vivo do que canto. Amanhã, por exemplo, sigo para Caminha com o Paredes e com o Rui Pato. Segundo me disse o organizador, o cachet que me foi atribuído é razoavelmente compensador. Outros biscates me esperam. Caldas, Alcobaça, Nazaré, talvez Portimão. Em Outubro darei um espectáculo no Monumental e tentarei gravar em França dois «long-playing»”(4)
No contrato estipulado, é referido o desempenho de actividades extramusicais, que se prendem com a “prospecção de valores” da canção portuguesa, como refere o próprio já nessa função:
“Procuro indivíduos com imaginação, que componham música de qualidade e vendável. O Arnaldo Trindade é um comerciante. A tarefa que me encomendou subordina-se a objectivos comerciais. Tenho, porém, a maior liberdade de acção. O patrão, que também é um homem de vistas largas dá-me carta branca. Estou, sobretudo, interessado em cantores dos subúrbios das cidades angolanas e moçambicanas. Acho que existem aí estilos e técnicas originais e ignorados.” (5)
JMBranco
“Numa das idas do Zeca [José Afonso] a Paris, gravamos uma fita eu e o Sérgio [Godinho] umas coisas que tínhamos feito juntos, entregamos aquilo ao Zeca e ele traz para Portugal para mostrar ao Arnaldo Trindade. E não sei porquê, mostra aquilo também ao [António] Marques de Almeida da Sassetti. (...) Eu aceitei a Sassetti por dois motivos… [tens de ver que isto era tudo feito ao telefone, a 2000 Km de distância pá, a gente tinha de estar ali a falar de números… e eu já ouvia queixas do Zeca e do Adriano [Correia de Oliveira] por causa do Arnaldo Trindade porque o gajo não pagava e não sei quê, diziam que ele era um aldrabão e era… (…) apesar de ter esse mérito de ter editado esses discos…]" (6)
Em Junho de 1974, em entrevista à revista Flama, José Afonso é questionado acerca da sua posição em relação a ideias de desvinculação de contratos com as editoras por parte de alguns intérpretes, no sentido de se organizarem em grupos que se afastassem de esquemas capitalistas de comercialização da música. O jornalista Fernando Cascais pergunta-lhe as razões porque ele não tinha quebrado o contrato com a editora de Arnaldo Trindade, ao que José Afonso responde:
“Porque tenho problemas de sobrevivência. Quando provarem que existem meios que excluem os da exploração normal capitalista, nessa altura ponho de parte os meus vínculos com a editora e adopto outros. Mas neste caso é preciso ter duas garantias: primeiro, que existirá uma entidade colectiva que garanta a sobrevivência das pessoas empenhadas nessa mesma entidade; segundo, que ela não usará os meios de exploração capitalista em uso em qualquer empresa comercial.” (7)
José Afonso e Vitorino afirmavam, em 1980 e 1981, ao jornal Musicalíssimo, que haviam sido vítimas de fraude da editora Orfeu, por esta não lhes comunicar valores reais quanto ao número de vendas de discos. José Afonso chega a referir que das várias reedições dos seus discos que foram feitas no estrangeiro (Espanha, Itália, França, Alemanha, entre outros) nunca chegou a receber. Já Vitorino afirma que a editora Orfeu não lhe forneceu dados correctos do número de vendas dos discos, tendo então desabafado que chegaram a dizer-lhe que apenas tinham vendido 200 exemplares do álbum “Semear a Salsa ao Reguinho”. (8)
A 17 de junho de 1983, quando Zeca Afonso era entrevistado por José A. Salvador na sua casa de Azeitão, recebe um telefonema do José Mário Branco onde este lhe dá conta que não iria mais aos estúdios da Sassetti sem que esta lhe pagasse o trabalho já feito. Zeca respondeu que o Arnaldo Trindade era pior, porque em 15 anos de contrato deve ter-lhe prejudicado em cerca de oito mil contos de direitos de autor. (9)
Fontes:
(1) Arnaldo Trindade, entrevista ao programa “Estranha Forma de Vida – Uma História da Música Popular Portuguesa, RTP, ep. 6, 11 de Abril 2012
(2) Arnaldo Trindade citado em Losa, 2009
(3) Catálogo “Desta canção que apeteço – obra discográfica de José Afonso 1953/1985
(4) Entrevista publicada em “Desta canção que apeteço – obra discográfica de José Afonso 1953/1985" e excerto de carta enviada por José Afonso ao irmão João Afonso dos Santos, datada de 2/8/1968, publicada em “Desta Canção que apeteço – Obra Discográfica de José Afonso”
(5) José Afonso em entrevista a Daniel Ricardo e Cáceres Monteiro, «Cena 7» suplemento de “A Capital” de 26/12/1970, publicado em "Cantar de Novo", 1971
(6) José Mário Branco, entrevista realizada a 14 de Julho 2012, Guimarães
(7) Flama nº1370, Junho 1974
(8) Jornal Musicalíssimo, nº 15, Dezembro 1980; nº17, Janeiro 1981
(9) Livra-te do Medo de José A. Salvador
Fonte principal de pesquisa: Dissertação de Mestrado de Hugo Castro
Zeca assina contrato com Arnaldo Trindade a 14 de janeiro de 1974
Em 1982 assina contrato pela Sassetti, um contrato com duração de três anos no qual resultaria os álbuns "Ao Vivo no Coliseu" e "Como Fora Seu Filho"
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