quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ouvindo e lendo Zeca

"Volto agora a falar-vos de Zeca Afonso e da sua importância para este movimento de cantores comprometidos com o seu tempo e com os destinos do seu país.
O facto de ter vivido em Angola e Moçambique longos períodos da sua vida permitiu-lhe combinar a memória da música popular portuguesa com ritmos e sonoridades que os portugueses conheciam mal.
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Zeca, não possuía qualquer formação musical, mas nem por isso deixou de ser um compositor genial e um extraordinário intérprete.
Aparentemente distraído, pouco valor dava ao lugar em que actuava quando havia mais cantores em cima do palco, e havia sempre vários. O que o preocupava era fazer passar a mensagem e conseguir comunicar em condições com o seu público. Hoje, não faltará quem chame a esta atitude "amadorismo", mas, para a nossa geração de cantores comprometidos com a vida e o futuro de Portugal, ser amador, não receber "cachet" e não exigir nome destacado no cartaz era uma forma de estar na vida, obedecendo a valores, princípios e causas.
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De resto, José Afonso sempre se recusou a chamar "espectáculos" às nossas actuações, preferindo designá-las por "sessões populares". Era esse o seu modo de estar na vida e no palco.
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Bastava-nos uma viola, um papel com a letra (no caso, muito frequente, de não a sabermos de cor) e um microfone ligado a uma aparelhagem de fraca qualidade para pormos milhares de pessoas a cantarem connosco, partilhando os nossos sonhos e os nossos ideais. As boas condições técnicas e acústicas viriam muito mais tarde.
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O cantor inquieto, nervoso, em regra preocupado com doenças quase sempre imaginárias, que gostava de ouvir anedotas e se recusava a alinhar na maledicência que caracteriza os portugueses, era o melhor e o mais inspirado de todos os criadores que decidiram cultivar este género artístico.
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Por vezes, escrevia-se à tarde uma canção que se cantava nessa mesma noite, condenando o golpe de Pinochet no Chile ou o assassinato do dirigente do PAIGC Amílcar Cabral. Às vezes, perdi-se o papel com o texto escrito e improvisava-se. Dito assim, tudo parece demasiado ligeiro e impensado. Mas não era. Era assim que esse tempo nos exigia que fôssemos e que actuássemos.
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Em terras como a Marinha Grande, Ferreira do Alentejo ou Cova da Piedade actuámos cercados de polícia de choque e pela PIDE, sem sequer pensarmos nas consequências desse acto temerário. Depois dormíamos uma ou duas semanas fora de casa, temendo a prisão. Zeca Afonso pernoitava frequentemente em casa de amigos para evitar a prisão de que seria vítima cerca de um ano antes do 25 de Abril de 1974."

José Jorge Letria
in Zeca Afonso e a Malta das Cantigas


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