sexta-feira, 31 de julho de 2015

Semeio Palavras

Bilhete para José Afonso

"Neste mês de Abril em que as mãos se entrelaçam à espera da madrugada de Maio, um bilhete de coragem. Ao companheiro da canção que tu és desde Coimbra, onde contigo aprendi a desenhar a cantiga contra as muralhas do silêncio obrigatório. Ao poeta e ao cantor que sabes ser, incapaz de existir sem resistir. Ao homem que tu és, sempre de pé nesta guerra que amanhã vamos vencer.

Um bilhete em jeito de recado. Em que te deixo um pedido. Que não te fiques calado nas prateleiras bafientas em que os saudosistas da direita e certa esquerda saudosa vão arrumando os teus discos. Uns para que morras e caias no esquecimento. Os outros para que descanses na redoma dos ídolos que se recordam em jantares de aniversário dos movimentos passados. Uns e outros irmanados no medo de que não cedas e continues a rasgar as ruas do desespero por onde vamos quebrando esta paz falsificada. Que os «vampiros» já andam por aí »batendo as asas/pela noite calada». E os «eunucos», rastejando pela lama, já «lambuzam de saliva os maiorais». Neste país onde a Rádio te procura amordaçar embriagada pela onda de censura em que se vai afogando. Em que a Televisão continua a fingir que não existes, preocupada em não ferir os «sentimentos do povo português», esse «bom povo» a quem se tenta adormecer com festivais de papagaios e balões. Nesta terra onde vegetam por quase toda a Imprensa alguns dos génios da crítica musical que, sentados nas poltronas do compadrio, se entretêm a construir belos sarcófagos para guardar com discursos de homenagem os que não sofrem da sua lamentável hidrocefalia congénita.

Escrevo-te, José Afonso, porque sei que tudo isto te dói. Porque talvez o cansaço te encontre à beira da estrada e te perguntes, por momentos, se vale a pena continuares a ser soldado destas horas. E eu quero dizer-te que aqui ainda existe muita gente que teima em estar acordado e precisa da força da tua voz para cantar na batalha. Porque sei, tenho a certeza, de que estaremos sempre juntos em Abril, enquanto neste país o povo não se convencer de que «o povo é quem mais ordena»."

Vieira da Silva

(Mundo Da Canção nº51 - Abril/Maio de 1979)

Vieira da Silva é um médico, poeta e cantautor português.

Nos anos 60 do século XX, enquanto estudante de Medicina em Coimbra participou activamente no movimento de renovação musical iniciado por Adriano Correia de Oliveira e José Afonso. Entre 1968 e 1976 gravou diversos discos. Foi director da revista Mundo da Canção e em 2002 publicou a colectânea de poesia Marginal - Poemas breves e cantigas. Esteve na 1ª Festa do Avante realizada na FIL em 1976 juntamente com Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, Luís Cília, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, Lopes Graça, Grupo «Outubro«, Manuel Freire entre outros.

Vieira da Silva foi o vencedor do 1º Festival da Música Popular Portuguesa na Figueira da Foz em 1969. Foram convidados especiais, Adriano Correia de Oliveira e Padre Fanhais.

Foto: Vieira da Silva no Externato de Ílhavo - 1969

"O Teto do Mendigo"

República Boa-Bay-Ela, foi aqui num quarto onde por vezes pernoitava, que Zeca Afonso escreveu na parede quatro quadras do "O Tecto do Mendigo".

"Tecto" ou "Teto"?

Não sei em que ano foi escrito este poema, mas seguramente foi depois de 1945.

Em 1945 dá-se o Acordo Ortográfico. Antes deste acordo, "TECTO" escrevia-se "TETO". O Decreto 35.228, de 8 de Dezembro de 1945 passou a exigir a inclusão de consoantes mudas em um pequeno número de palavras em que não eram pronunciadas em Portugal, mas o eram no Brasil, quer geral, quer restritamente (caracteres, cacto, tecto).

Zeca escreveu sempre "TETO" e nunca "TECTO" neste poema mas, no entanto, nas edições de "Cantares de José Afonso", "Cantar de Novo" e "José Afonso Textos e Canções", os autores retificaram e colocaram a consoante muda "C" onde ela não existia.

Mudam-se os tempos, muda-se a grafia e, em 2015 (AO de 1990 em vigência a partir de 2015), volta o TECTO a ser de novo "TETO".
O poema do Zeca atravessa o tempo e volta a estar atual (atual sem "C").

As quadras do "O Teto do Mendigo" fazem parte da canção "Tecto da Montanha" que Zeca gravou no seu álbum 'Cantares do andarilho' (1968).

Zeca e a LUAR

"Não era do PC. Passei a aderir à LUAR. Eu próprio já conhecia militantes da LUAR antes do 25 de Abril. Passei a aceitar aspectos da LUAR que eram perfeitamente coincidentes com aquilo que eu pensava, isto é dar apoio ao chamado poder popular, aos órgãos populares de base.(...) A revolução era as ocupações de casas e de terras, a revolução era na transformação de edifícios em creches, em hospitais, etc. (...) Passei a cantar assiduamente (...) quase sempre ao lado de Fanhais, menos vezes com Vitorino e menos assiduamente com o Sérgio (...)

E acompanhei esses camaradas..."

in Zeca Afonso "Livra-te do Medo" de José A. Salvador

Zeca, Fanhais, Sérgio e Vitorino no congresso da LUAR em 24 de fevereiro de 1975.


Em outros comícios da LUAR

Marinha Grande


Redondo


fotos gentilmente cedidas por: Carlos Manuel Duarte

Depoimentos

segunda-feira, 27 de julho de 2015

«Coro da Primavera»

Notas por José Afonso

«Coro da Primavera»

"Consultem-se os comentários ao «Canto Jovem» do qual o «Coro da Primavera» é a introdução coral e orquestral. A composição da letra resistiu a todas as tentativas de lubrificação. O rufar dos tímbalos (ou címbalos?) e dos tambores intervém gradualmente como simples apoio no início, contagiante e poderoso no final"

Como refere aqui uma leitura do comentário do «Canto jovem» aqui vai ele:

«Canto jovem»

"Para ser cantado pelos estudantes universitários que o autor conheceu numa digressão para que foi convidado. Destina-se a ser interpretado como música coral por duzentos figurantes de ambos os sexos e de todas as proveniências e condições."

in Cantares de José Afonso - 2ª edição - 1967 - Nova Realidade

Sem o rufar dos tímbalos (ou címbalos?) e dos tambores, (mais ao jeito do "Canto Jovem") e sem duzentos figurantes de ambos os sexos, aqui fica uma magnífica interpretação do "Coro da Primavera" pelo Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, em Bratislava, dirigidos pelo Maestro Virgílio Caseiro.

Reparar que o som dos pássaros é feito vocalmente pelos Orfeonistas.

Cangas do Morrazo (perto de Vigo)

Júlio Pereira

“Era uma vez na Galiza, anos oitenta. Um concerto de José Afonso em Cangas do Morrazo (perto de Vigo) num velho teatro municipal.

Acompanhava-o eu, Henrique Tabot e Guilherme Inês. Chegados à hora do espectáculo, deparámo-nos com um público, a meio da plateia, de seis pessoas! A minha reacção (suponho que a dos meus colegas) foi a de não tocar. E o Zeca disse não!

Tocados os 17 ou 18 temas ensaiados pelo grupo, José Afonso pegou na viola e sozinho, tocou cantando mais oito temas entre os quais “Catarina” – a primeira vez que o ouvi cantar assim. Estranho. As seis pessoas de pé aplaudiram incansavelmente José Afonso e durante muito tempo. Como se a sala estivesse cheia. Só mais tarde percebi que o Zeca, nesse dia, tinha deixado seis amigos na Galiza.”

Daqui:
http://aviagemdosargonautas.net/2012/11/28/jose-afonso-um-amigo-da-nacao-galega/

Cartaz: AJA
http://www.aja.pt/cangas-do-morrazo/

Carlos Salomé

Os irmãos Salomé (Carlos, Janita e Vitorino) durante anos, acompanharam Zeca Afonso em muitos eventos tanto em Portugal como no estrangeiro.

As fotos são de alguns desses momentos.

Verão de 1975 no Pavilhão dos Desportos em Lisboa num comício organizado pela "Lotta Continua", organização italiana.

Carlos Salomé, Janita (entre o Carlos e o Zeca), depois ?, Sérgio Godinho, Vitorino e José Luis Diniz.

Alemanha em 1978, numa tourneé por 18 cidades alemãs de solidariedade com Portugal e a Reforma Agrária

O 1º da esquerda é um tradutor, depois Zeca Afonso, Carlos Salomé e Manuel do Asilo.

Holanda na mesma tourneé.


(fotos, informações e identificação dos intervenientes por Carlos Salomé)

Um cartaz raro

9 de Março de 1975 – Ocupação de uma casa para nela instalar a sede da Comuna Popular de Aveiras de Cima.

9 de março de 1976 - no seu 1º aniversário, a Comuna Popular de Aveiras de Cima convidava Zeca Afonso, Fanhais, Pedro Barroso...

Poesia do Zeca - Queda livre fogo preso

MÚSICA EM ALCOBAÇA NO TEMPO DO PREC

ZECA AFONSO - junho de 1975

«Sessão da LUAR, realizada num dos salões da ala norte do Mosteiro, com a presença de Palma Inácio e Camilo Mortágua, e ainda o advogado radical Pessanha Gonçalves, que a organizou.

Esteve presente José (Zeca) Afonso (aliás tinha sido professor liceal em Alcobaça), que cantou algumas canções, começando por “Venham Mais Cinco” e encerrando com o inevitável “Grândola Vila Morena”, entoado em pelos cerca de 50 presentes.»

Fim de citação

50 pessoas. 50 pessoas que foram ouvir Zeca Afonso, pois apesar da propaganda feita pelos organizadores, o público não correspondeu.

A 25 novembro de 1975 foi-se o PREC. Nada mais foi como antes.

Daqui:

http://flemingdeoliveira.blogspot.pt/2014/04/musica-em-alcobaca-no-tempo-do-prec.html

quarta-feira, 22 de julho de 2015

ZECA AFONSO, FILHO DA MADRUGADA, por Pedro Laranjeira

"Anarquista, sonhador, poeta, Zeca Afonso colou aos oito séculos e meio de lusas tradições algumas páginas novas, com a coragem de muitos antes dele, mas com o ineditismo de que só a sua própria singularidade foi medida.

Em 23 de Fevereiro de 1987 a morte saiu-lhe à rua, (...) e nem um fragmento de memória nos separa da recordação que deixou, das frases que toda a gente conhece, da importância da sua passagem pela história que lhe foi tempo de vida.

Andarilho de palavras, aprendeu a usá-las entre europas e áfricas de pessoas e poemas.

Cantou Coimbra e transfigurou o cariz da balada, acertou-a com a sua enorme insatisfação das aceitações que o rodeavam e desenhou as diferenças em metáforas, umas subtis outras explícitas, que lhe trouxeram companheiros de estrada mas o levaram também às quatro paredes de uma cela onde aprendeu na carne a importância de ser um incómodo público.

Buscou raízes nas tradições culturais de outros povos e gentes, de África ao Brasil, ligou-as às nossas próprias e fez nascer sonoridades novas, poemadas de uma forma nunca visitada pela cultura deste areal onde não nasce a aurora.

E lá se sentava às vezes na Casa das Tortas de Azeitão, mais sozinho que o Herman que também por lá parava, sempre com papeis e um olhar distante, vazio por momentos dos amigos maiores que o pensamento que lhe aqueceram o percurso, talvez imerso em linhas que hoje todos nós já ouvimos cantadas.

Caminharam com ele irmãos de revolta, como Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Rui Pato, Manuel Freire, Alípio de Freitas, tantos que viram as portas que Abril lhe abriu serem descobertas pelo Zeca como fechadas de novo… e a utopia a continuar, a elusiva revolução de gentes e mentes a parecer uma necessidade eterna.

Era um filho da madrugada, fiel à sua moral muito própria… “eu sou o meu próprio comité central” - ele que nunca se identificou com nenhum… e tentaram conotá-lo com os comunistas, que ele nunca foi, com a LUAR, a que nunca pertenceu, até mesmo com uma estranha definição de “católico progressista”… seja o que for que isto queira dizer…

Entre “incómodo” e “perigo público”, o sistema catalogou-o ab initio como “um homem de esquerda” (esse mesmo sistema que das mudanças dá à História o ponto de vista de quem prevalece) - e o rótulo ficou, para desinformação das esquerdas e das direitas que, de resto, são designações cada vez mais misteriosas nos meandros dos seus contornos de conveniência.

Com o rótulo, secundarizou-se a dimensão do artista, do poeta, do músico, do génio que nunca poupou ferroadas, tanto às direitas como às esquerdas do seu tempo.

Porque Zeca Afonso, à procura de manhã clara, foi um libertário sem doutrina ou ideologia que não derivassem de si próprio.

Podia, em certos momentos, estar mais perto de certas posições que de outras, mas ferrava-lhes nas canelas ao menor desvio. Ninguém nunca o obrigou, mas veio para a rua e cantou… e quem de perto o conheceu, sempre trouxe outro amigo também…

Tão distraído como Einstein teve fama de ser, ele vivia numa dimensão muito sua, nem sempre em consonância com o momento e o local imediatamente presentes.

Até como professor encontrou uma forma diferente de agir e tentou, num país onde nunca houve nenhum clube de poetas mortos, estimular os alunos a pensar pelas suas próprias cabeças.

Durante 32 anos gravou discos e deixou uma obra que constitui um dos mais valiosos patrimónios da cultura portuguesa de todos os tempos.

Foi uma força da natureza, enquanto a vida lhe não faltou…

… e como não há machado que corte a raiz ao pensamento, ele alimentou a utopia que lhe deu forças até mesmo depois de as ter perdido às armas de uma coisa mais poderosa que lhe fora a PIDE, chamada esclerose lateral amiotrófica, um dos muitos fracassos das medicinas, que deixam uma pessoa lúcida mesmo quando já não consegue expressar-se…

Foi essa a última revolta, a que já não conseguiu transmitir…"

Daqui: http://freezone.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=25


"Tu Gitana" - "Luar na Lubre"

3 versões da autoria de "Tu Gitana", do grupo "Luar na Lubre". A primeira em 1997, depois em 2001 e 2005.


Na 3ª versão, a autoria da música a Zeca Afonso é que se encontra correta.


Colaboração de Paxariño Deffes


Sobre o tema:

notasemelodias

"Tu Gitana"

Tema de Zeca Afonso envolvido em plágio

"A irlandesa Méav ní Mhaolchatha está a ser acusada por alguns musicólogos portugueses de ter feito plágio a um tema de José Afonso.
Em causa, está o tema 'The Calling', que dá o nome ao disco lançado no final do ano passado (2013) pela ex-Celtic Woman e as suas parecenças com 'Tu Gitana', de Zeca Afonso. Faça as suas próprias comparações ouvindo os dois temas nos vídeos em baixo. De facto, até a vocalização de Méav é parecida à de Helena Vieira no original editado em "Galinha do Mato", de 1985.

A cantora irlandesa já se defendeu em declarações ao Correio da Manhã, afirmando que a melodia que a inspirou a escrever o tema foi-lhe apresentada como sendo uma «canção tradicional celta», pelo produtor Craig Leon. De facto, Zeca Afonso era um reconhecido melómano e entre as suas muitas inspirações estava a música galega, que vai buscar muito ao imaginário celta.

Por seu lado, o produtor norte-americano Craig Leon afirmou ao mesmo jornal que «os temas tradicionais não estão abrangidos pelas leis dos direitos de autor». Leon garante que procurou o tema nas bases de dados digitais e que não encontrou qualquer referência a Zeca Afonso, apenas a indicação de «domínio público». O desaparecido compositor português não aparece creditado no disco, aparecendo apenas a indicação de «tema tradicional».

A Sociedade Portuguesa de Autores informa que, para se dar início ao processo por plágio, tem de dar entrada uma queixa apresentada pelos herdeiros de Zeca Afonso."

Daqui:

cotonet IOL

Sobre esta polémica disse Méav ní Mhaolchatha:

Just to clarify, Jose Afonso recorded the same traditional melody but he did not claim copyright on the words or melody. The melody is traditional. This is the title track of my album The Calling. The lyrics are my own and this version is under copyright. It is released by Warner music. Thank you.

Tradução livre :

"Só para esclarecer, José Afonso gravou a mesma melodia tradicional, mas ele não reclamou direitos de autor sobre as palavras ou melodia. A melodia é tradicional. Esta é a faixa-título do meu álbum The Calling. As letras são minhas e esta versão é protegido por direitos autorais. Ele é liberado pela Warner Music. Obrigado."

Fim de citação

Pelas pesquisas que fiz a letra é realmente tradicional (Cancioneiro de Elvas e não Vila Viçosa) com música de Zeca Afonso. Se não está aqui em causa a letra de 'The Calling'já que a mesma é de autoria de Méav e nada tem a ver com a que está na canção do Zeca, já a música é do Zeca e aí há que dar ênfase ao autor e não apresentar como autores da letra e música da faixa "The Calling", Craig Leon / Méav / Cassell Webb.

A voz de Helena Vieira no tema, inserido no LP "Galinhas do Mato:


... E agora comparar com "The Calling" de Méav


Ver mais sobre este tema

Blitz

Sobre o Cancioneiro

wikipédia

O Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia de Elvas-Página XXII

BALADA DO OUTONO - Instrumental

música: José Afonso
arranjo: Rui Pato

Este instrumental, faz parte do LP "BALADAS E CANÇÕES" - 1ª edição de 1964.


Tolentino

"Dizes que uma guerra acesa
é teatro de impiedade
chamas-lhe crua fereza
flagelo da humanidade
triste horror da natureza

Pintas um bravo guerreiro
e a meus olhos vens mostrá-lo,
para ferir mais ligeiro,
metendo o ardente cavalo
sobre o exangue companheiro

A um lado e a outro lado
a morte mandando vai
co’ sanguinoso traçado,
até que ele mesmo cai
de um pelouro atravessado"

Este poema atribuído a Zeca Afonso, não é do Zeca.

Erro sistemático nas várias edições do livro "José Afonso Textos e Canções" e ainda por cima revista na 3ª edição por Elfriede Engelmayer, uma autoridade ao que ao Zeca diz respeito, e que consta na págª 47, atribuem ao Zeca a autoria deste poema o que é falso.

Estas três quintilhas são a 15ª, 16ª e a 17ª do poema "A Guerra" de Nicolau Tolentino.


Poema "A Guerra"

Colaboração de Luís Brântuas

sábado, 11 de julho de 2015

Urbano Tavares Rodrigues

"A noite das lágrimas e da raiva. A madrugada das carícias e do sorriso. O dia claro da festa colectiva. Tudo isso se encontra na poesia cantada de José Afonso. A luminosa gargalhada do povo, o seu suor de sangue, nas horas de esforço ingrato e de absurda expiação. O lirismo primaveril e feminino das bailias que não morreram. E o orvalho da esperança. E os ecos de um grande coro de fraternidade sonhada e assumida. José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã.

No tumulto da contestação, na marcha de mãos dadas, com flores entre os lábios, é ele a figura de proa, o arauto, o aedo, o humilde, o múltiplo, o doce, o soberbo cantador da revolta e da bonança. Singelo José Afonso do Algarve doirado, dos barcos de vela panda, do Alentejo infinito sem redenção, dos pinhais da melancolia, dos amores sem medida, do sabor de ser irmão... José Afonso é a primeira voz da massa que avança em lume de vaga, é a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na praia da cólera da poesia, da balada nova."

Urbano Tavares Rodrigues

in "Cantares do Andarilho"

Foto:
Zeca no Alentejo - Maio de 1979

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ouvindo e lendo Zeca

"Volto agora a falar-vos de Zeca Afonso e da sua importância para este movimento de cantores comprometidos com o seu tempo e com os destinos do seu país.
O facto de ter vivido em Angola e Moçambique longos períodos da sua vida permitiu-lhe combinar a memória da música popular portuguesa com ritmos e sonoridades que os portugueses conheciam mal.
(...)
Zeca, não possuía qualquer formação musical, mas nem por isso deixou de ser um compositor genial e um extraordinário intérprete.
Aparentemente distraído, pouco valor dava ao lugar em que actuava quando havia mais cantores em cima do palco, e havia sempre vários. O que o preocupava era fazer passar a mensagem e conseguir comunicar em condições com o seu público. Hoje, não faltará quem chame a esta atitude "amadorismo", mas, para a nossa geração de cantores comprometidos com a vida e o futuro de Portugal, ser amador, não receber "cachet" e não exigir nome destacado no cartaz era uma forma de estar na vida, obedecendo a valores, princípios e causas.
(...)
De resto, José Afonso sempre se recusou a chamar "espectáculos" às nossas actuações, preferindo designá-las por "sessões populares". Era esse o seu modo de estar na vida e no palco.
(...)
Bastava-nos uma viola, um papel com a letra (no caso, muito frequente, de não a sabermos de cor) e um microfone ligado a uma aparelhagem de fraca qualidade para pormos milhares de pessoas a cantarem connosco, partilhando os nossos sonhos e os nossos ideais. As boas condições técnicas e acústicas viriam muito mais tarde.
(...)
O cantor inquieto, nervoso, em regra preocupado com doenças quase sempre imaginárias, que gostava de ouvir anedotas e se recusava a alinhar na maledicência que caracteriza os portugueses, era o melhor e o mais inspirado de todos os criadores que decidiram cultivar este género artístico.
(...)
Por vezes, escrevia-se à tarde uma canção que se cantava nessa mesma noite, condenando o golpe de Pinochet no Chile ou o assassinato do dirigente do PAIGC Amílcar Cabral. Às vezes, perdi-se o papel com o texto escrito e improvisava-se. Dito assim, tudo parece demasiado ligeiro e impensado. Mas não era. Era assim que esse tempo nos exigia que fôssemos e que actuássemos.
(...)
Em terras como a Marinha Grande, Ferreira do Alentejo ou Cova da Piedade actuámos cercados de polícia de choque e pela PIDE, sem sequer pensarmos nas consequências desse acto temerário. Depois dormíamos uma ou duas semanas fora de casa, temendo a prisão. Zeca Afonso pernoitava frequentemente em casa de amigos para evitar a prisão de que seria vítima cerca de um ano antes do 25 de Abril de 1974."

José Jorge Letria
in Zeca Afonso e a Malta das Cantigas


III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro - Abril de 1973

Zeca atuou, juntamente com José Jorge Letria, no III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro onde houve carga policial contra os participantes nesse Congresso.

José Jorge Letria

"Em Abril de 1973, eu e José Afonso cantámos no dia de abertura do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Estavam lá milhares de pessoas que cantaram connosco. O que faltava em condições técnicas sobrava em calor humano e em fraternidade. No dia seguinte, abateu-se uma feroz repressão sobre os participantes quando iam em romagem até à campa de um resistente chamado Mário Sacramento, médico e escritor falecido em 1969.

Muitas dessas pessoas iam a cantar canções que nós interpretámos na véspera. Depois vieram os polícias, os cães-polícias e fizeram dezenas de feridos e de detenções. E nós tínhamos orgulho pelo facto de podermos viver momentos como esses, sentindo já no ar o aroma de um Abril que estava quase a chegar."

in Zeca Afonso e a Malta das Cantigas

MEMÓRIAS DO ZECA

Natércia Pedroso

(...) lembro-me principalmente, no dia da manifestação quando da realização do III Congresso da Oposição Democrática, em Abril de 1973, logo que a policia de choque carregou com a habitual brutalidade, por acaso eu ia nas primeiras filas de gente e tropecei, durante instantes que me pareceram uma eternidade fiquei estatelada no meio do chão sem me conseguir levantar e a sentir os pés, sapatos e botas de toda a gente a passarem por cima de mim,e de repente alguém me agarrou e me levantou em braços e pôs-me de pé! era o Zeca que viu o que se passava, voltou atrás e me ajudou dizendo: corre moça corre! claro que foi o que fiz, mas mais uns metros corridos fui apanhada e levei a maior carga de pancada que alguma vez apanhei,recordo olhar olhos nos olhos para o brutamontes do policia e pensar "se este gajo me volta a bater vou cair de novo fico aqui", senti-me como uma raposa a fugir dos caçadores, lá consegui correr mais e refugiei-me num café que já estava cheio de manifestantes ou feridos ou em estado de choque. Pouco depois, com os ânimos já um pouco mais calmos lá nos dirigimos para o teatro onde se realizava o Congresso.

Nunca cheguei a agradecer convenientemente ao Zeca, mas nunca esqueci nem nunca esquecerei o seu gesto. Era um grande poeta, um grande trovador, um artista no verdadeiro sentido da palavra, um grande homem, simples e humilde. Por tudo isso, Obrigada Zeca!

Daqui:

http://istonaoestaaqui.blogspot.pt/2012_02_01_archive.html


Vídeo desse congresso e a carga policial (música de Zeca Afonso).

segunda-feira, 6 de julho de 2015

ORFEU vs SASSETTI

Qual teria sido a razão de Zeca Afonso ter assinado em 1982, contrato com a Sassetti depois de 15 anos de "ligação" com a Orfeu de Arnaldo Trindade, quando tinha sido este que lhe teria dado a mão e gravado o álbum "Cantares do Andarilho" quando todas as outras editoras se tinham recusado fazê-lo?


Arnaldo Trindade

“Não conheço de facto nenhum cantor tão completo como ele [José Afonso]. Não só a voz maravilhosa como também o bom gosto, os arranjos…. Ia buscar também pessoas, foi buscar o Fausto… todos eles cantavam e ajudavam-se mutuamente esse grupo da altura… o Vitorino, o José Mário Branco e outros…” (1)

“…o responsável era o editor, nem o autor nem o cantor tinha responsabilidade nenhuma política, o editor é que tinha. Tanto é assim que eles andaram com o Cantares do Andarilho por toda a parte e ninguém quis tomar essa responsabilidade. Na altura, eu achei aquilo tão bonito, tão bonito, tão bonito (para mim o Cantares do Andarilho é o grande disco do José Afonso) “eu vou tomar a responsabilidade disto, vou para a frente”, e gravamos. Porque ele vinha do problema dos Vampiros, não era, feito na Casa Figueiredo, na Rapsódia” (2)

José Afonso escreve um postal a Albano Rocha Pato, sem data, onde escreve: “Meu caro Pato, recebi o seu postal. Preciso que me diga com a máxima urgência quais as ofertas de gravação e condições propostas. Há mais de quinze dias que prossegue uma renhida luta de concorrência comercial em que me disputam a Alvorada, a Valentim e a Tecla. Deixei o caso a um sujeito muito amigo, tipo influente e com muita experiência que é uma espécie de procurador. Tenho estado à venda por preços que vão subindo à medida que a concorrência se acentua (…)” (3)

José Afonso, em entrevista a José Salvador, diz que a escolha de gravar pela Orfeu de Arnaldo Trindade deve-se sobretudo a razões económicas, pois vivia por essa altura um período bastante complicado financeiramente, pelo que a sua decisão terá sido com base na proposta que lhe foi feita representar um “cachet superior aos outros”. José Afonso afirma então que a sua motivação para a gravação de discos passa essencialmente por necessidades económicas, pois nessa altura já tinha sido proibido de exercer a actividade de professor passando a música a representar a sua única actividade, como escreve numa carta enviada ao irmão:

“Presentemente vivo do que canto. Amanhã, por exemplo, sigo para Caminha com o Paredes e com o Rui Pato. Segundo me disse o organizador, o cachet que me foi atribuído é razoavelmente compensador. Outros biscates me esperam. Caldas, Alcobaça, Nazaré, talvez Portimão. Em Outubro darei um espectáculo no Monumental e tentarei gravar em França dois «long-playing»”(4)

No contrato estipulado, é referido o desempenho de actividades extramusicais, que se prendem com a “prospecção de valores” da canção portuguesa, como refere o próprio já nessa função:

“Procuro indivíduos com imaginação, que componham música de qualidade e vendável. O Arnaldo Trindade é um comerciante. A tarefa que me encomendou subordina-se a objectivos comerciais. Tenho, porém, a maior liberdade de acção. O patrão, que também é um homem de vistas largas dá-me carta branca. Estou, sobretudo, interessado em cantores dos subúrbios das cidades angolanas e moçambicanas. Acho que existem aí estilos e técnicas originais e ignorados.” (5)

JMBranco

“Numa das idas do Zeca [José Afonso] a Paris, gravamos uma fita eu e o Sérgio [Godinho] umas coisas que tínhamos feito juntos, entregamos aquilo ao Zeca e ele traz para Portugal para mostrar ao Arnaldo Trindade. E não sei porquê, mostra aquilo também ao [António] Marques de Almeida da Sassetti. (...) Eu aceitei a Sassetti por dois motivos… [tens de ver que isto era tudo feito ao telefone, a 2000 Km de distância pá, a gente tinha de estar ali a falar de números… e eu já ouvia queixas do Zeca e do Adriano [Correia de Oliveira] por causa do Arnaldo Trindade porque o gajo não pagava e não sei quê, diziam que ele era um aldrabão e era… (…) apesar de ter esse mérito de ter editado esses discos…]" (6)

Em Junho de 1974, em entrevista à revista Flama, José Afonso é questionado acerca da sua posição em relação a ideias de desvinculação de contratos com as editoras por parte de alguns intérpretes, no sentido de se organizarem em grupos que se afastassem de esquemas capitalistas de comercialização da música. O jornalista Fernando Cascais pergunta-lhe as razões porque ele não tinha quebrado o contrato com a editora de Arnaldo Trindade, ao que José Afonso responde:

“Porque tenho problemas de sobrevivência. Quando provarem que existem meios que excluem os da exploração normal capitalista, nessa altura ponho de parte os meus vínculos com a editora e adopto outros. Mas neste caso é preciso ter duas garantias: primeiro, que existirá uma entidade colectiva que garanta a sobrevivência das pessoas empenhadas nessa mesma entidade; segundo, que ela não usará os meios de exploração capitalista em uso em qualquer empresa comercial.” (7)

José Afonso e Vitorino afirmavam, em 1980 e 1981, ao jornal Musicalíssimo, que haviam sido vítimas de fraude da editora Orfeu, por esta não lhes comunicar valores reais quanto ao número de vendas de discos. José Afonso chega a referir que das várias reedições dos seus discos que foram feitas no estrangeiro (Espanha, Itália, França, Alemanha, entre outros) nunca chegou a receber. Já Vitorino afirma que a editora Orfeu não lhe forneceu dados correctos do número de vendas dos discos, tendo então desabafado que chegaram a dizer-lhe que apenas tinham vendido 200 exemplares do álbum “Semear a Salsa ao Reguinho”. (8)

A 17 de junho de 1983, quando Zeca Afonso era entrevistado por José A. Salvador na sua casa de Azeitão, recebe um telefonema do José Mário Branco onde este lhe dá conta que não iria mais aos estúdios da Sassetti sem que esta lhe pagasse o trabalho já feito. Zeca respondeu que o Arnaldo Trindade era pior, porque em 15 anos de contrato deve ter-lhe prejudicado em cerca de oito mil contos de direitos de autor. (9)

Fontes:
(1) Arnaldo Trindade, entrevista ao programa “Estranha Forma de Vida – Uma História da Música Popular Portuguesa, RTP, ep. 6, 11 de Abril 2012
(2) Arnaldo Trindade citado em Losa, 2009
(3) Catálogo “Desta canção que apeteço – obra discográfica de José Afonso 1953/1985
(4) Entrevista publicada em “Desta canção que apeteço – obra discográfica de José Afonso 1953/1985" e excerto de carta enviada por José Afonso ao irmão João Afonso dos Santos, datada de 2/8/1968, publicada em “Desta Canção que apeteço – Obra Discográfica de José Afonso”
(5) José Afonso em entrevista a Daniel Ricardo e Cáceres Monteiro, «Cena 7» suplemento de “A Capital” de 26/12/1970, publicado em "Cantar de Novo", 1971
(6) José Mário Branco, entrevista realizada a 14 de Julho 2012, Guimarães
(7) Flama nº1370, Junho 1974
(8) Jornal Musicalíssimo, nº 15, Dezembro 1980; nº17, Janeiro 1981
(9) Livra-te do Medo de José A. Salvador

Fonte principal de pesquisa: Dissertação de Mestrado de Hugo Castro


Zeca assina contrato com Arnaldo Trindade a 14 de janeiro de 1974

Em 1982 assina contrato pela Sassetti, um contrato com duração de três anos no qual resultaria os álbuns "Ao Vivo no Coliseu" e "Como Fora Seu Filho"



O carro

«Não gostei muito do espetáculo do Coliseu. Afinal, vivi muitas situações daquelas, apenas com menos gente»

Mas foi depois deste concerto que os amigos resolveram oferecer-lhe um carro. Um carro em 2ª mão. O carro que Zélia conduzia levando-o de Azeitão-Lisboa para os tratamentos. O carro anterior, um «Peugeot» que, segundo o José Mário Branco, parecia uma peça de museu. Deitava fumo por todos os lados, precisava de ser empurrado para pegar, «era uma máquina diabólica» - dizia Zeca sorrindo, recordando os muitos milhares de quilómetros feitos por esse país fora, cantando em tudo o que era sítio.

O Zé Mário, com outros cantores, compraram-lhe então em 2ª mão, um Renault que funcionava «como as minhas pernas» no dizer do Zeca.

Zeca pode não ter gostado muito do espetáculo do Coliseu mas a solidariedade dos amigos para quem sempre foi solidário, foi um gesto generoso a quem tanto nos deu.

Zeca nunca soube quem foram os amigos que lhe ofereceram o carro.

Fonte: DL de 31 dezembro de 1984 e "Livra-te do Medo" de José A. Salvador


A estratégia para tornear o lápis azul da censura

José Niza

José Niza desempenha na Orfeu, na qual era responsável pela produção discográfica, um importante papel nas relações com a censura, negociando a entrada de determinados temas nos álbuns, como refere o próprio:

“Arrisquei e apostei numa estratégia que funcionou quase a 100% e que assentava na avaliação que então fazia da relação entre o “gato” e o “rato” (…)

Apercebi-me de que havia alguma margem de manobra e que era preciso aproveitá-la.

Dou um exemplo: em 1972, quando o Zeca Afonso e eu preparávamos a gravação do disco “Eu Vou Ser Como a Toupeira”, pedi-lhe que me desse não só os poemas que pretendia cantar, mas também outros mais violentos e explícitos. Estes poemas excedentários serviriam de isco provocatório da ira dos lápis azuis dos censores e eram mesmo para serem cortados.

Eu sabia - ou julgava saber – que o regime não queria silenciar totalmente o Zeca, queria apenas controlá-lo. Tal como tinha acontecido com o Zip-Zip. É que silenciar completamente o Zeca, o Adriano, o Manuel Freire, o Fanhais e outros criaria um efeito de boomerang que iria virar-se contra o regime e inverteria as lógicas dos custos-benefícios. O truque funcionou: quando as letras foram devolvidas, das canções que queríamos gravar, só A Morte Saiu à Rua vinha cortada.

Mesmo assim, não me conformei. Telefonei ao Dr. Pedro Feytor Pinto, então director geral de Informação, que eu conhecia desde os tempos de Coimbra e da Tuna Académica, onde ele fora contemporâneo do Zeca. Almoçámos.

Ele sabia que a canção descrevia o assassínio, pela PIDE, do pintor comunista Dias Coelho, embora o nome não fosse referido no poema do Zeca. E eu dizia-lhe: «Mas quem é que sabe quem era o Dias Coelho? Onde é que está o problema?» Quando chegámos ao café, A Morte Saiu à Rua estava autorizada!”

"A Morte Saiu à Rua" por Rui Veloso

Poesia do Zeca - Pardal Velho

Pardal velho
Morre à sede
Num mundo pequeno
cresci

Bolor no retrato
Cotão na parede
Por lá rompeu o bicho
(e o monturo)

Cheios de ofícios
E manjares miúdos
Não comemos aqui

Lagos, 1957

José Afonso - Textos e Canções