sábado, 4 de outubro de 2014

Zeca em Belmonte - 1938/39

"Gastão era perfeito/ conduzido por seu dono/ em sonolências afeito/ às picadas dos mosquitos" GASTÃO ERA PERFEITO, in Venham mais Cinco (1973)

O dealbar dos anos 40 vem encontrar o "menino zequinha" como porta-bandeira, a fazer a saudação nazi, de calças à golfe, bivaque e um cinturão com um grande S (farda da Mocidade Portuguesa), a marcar o passo no pelotão de miúdos pelas ruas de Belmonte. Na terra e na família pontificava o tio Filomeno (que lhe inspirou a canção em epígrafe), presidente da Câmara, comandante da Legião, homem de ardente vassalagem a Salazar, admirador de Franco e germanófilo. "Londres comme Cartago sera détruite!", assim soavam as emissões nocturnas na "telefonia" lá de casa. Quase todas as noites partia um comboio para a Alemanha hitleriana. Era o negócio do volfrâmio. Mas disto, Zeca, com 10 anos, ainda não percebia nada. Só sabia que aquele regresso à metrópole (por causa dos estudos) foi sentido como um degredo.

«Lembro-me de andar a marchar fardado à Mocidade Portuguesa à frente dos outros, como porta-bandeira. Era o meu tio que me metia nisso. À noite, estávamos à volta da braseira e o meu tio mandava-me deitar. Mas nunca conseguia dormir, porque se ouviam os ruídos do rádio sempre que ele procurava sintonizar a Rádio Paris colaboracionista. O locutor, no final das emissões, declarava solene: "Londres será destruída como Cartago."»

«Eu ainda andei de mão esticada a gritar "Quem vive? Carmona, Carmona, Carmona", "Quem manda? Salazar, Salazar, Salazar!"»

Ainda por cima, sendo ele ali visto como "um menino agasalhado", sobrinho do senhor doutor, que não podia participar nos jogos com os outros miúdos da vila.

Fez aí a quarta classe, espartilhado entre a chateza dos dias, o acanhamento da paisagem, a monotonia das missas, paixonetas por declarar, e uma tia que lhes racionava a água, de guarda ao jarro, atrás da porta, "como um índio sioux": "O pior ano da minha vida". Da escola guardava recordações traumatizantes, "enxurros monumentais de porrada". Zeca era distraído, patologicamente distraído. O professor tinha o hábito de o suspender pelas orelhas, "como se aquela tormentosa ascensão tivesse o mérito inverso de o fazer descer à terra", conta João Afonso: "A imensidade africana que Zeca trazia na cabeça e nos sentidos já não cabia nos parâmetros concretos do didactismo escolar."

Fontes e textos: José Afonso "Cronologia da Vida e Obra; "Livra-te do Medo" - José A. Salvador; "Os Lugares de Zeca Afonso" - Visão.

Fotos: Zeca fardado à MP e com o tio Filomeno que, segundo o irmão João Afonso, era um exímio dançarino.

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