quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Declarações de Voto dos partido - CDS

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. José Gama (CDS):

- Sr. Presidente, Srs. Deputados: Sem luto porque o poeta o não quer; sem insígnias porque a sua obra é de todos e é esta a sua vontade; sem hipocrisia que a nossa formação rejeita e a memória do cantor reclama, votamos a favor do voto de pesar pelo Dr. José Afonso. Não o fizemos por rotina.

Nunca nos moveu a indiferença quando a morte de um homem acontece. Como podia sê-lo agora, quando este desaparecimento deixa um rasto de fogo na sua geração e no seu tempo? Não o fogo das armas. Destas dizia Zeca Afonso: «Se algum dia tivesse de lutar com armas na mão, não sei se seria capaz de o fazer». Também por isto a sua figura se engrandece. Era o fogo da crença de quem acredita na verdade da sua luta. Travada de sol a sol, de Janeiro a Janeiro, entre manhãs de liberdade e noites longas de prisão. Luta vinda do vigor das gentes que chega das «terras do bravo», temperada com a alegria de quem encontra em «cada esquina um amigo». Ouvi-o nos meus tempos de Coimbra quando, em assembleias inflamadas, homens vigiavam os outros homens em noites de palavras cantadas em estrofes de protesto e inconformismo.

Eu não era, concerteza, dos mais inconformados, mas era, de certeza, dos maiores admiradores do seu canto e do seu verso.
Soube da sua presença, mais tarde, em festas de raiz político-partidária, festas onde não estivemos porque a nossa luta conhecia outro estilo e outros campos de combate. Seria estultícia nossa, todavia, pensar que é por esta circunstância que a arte mingua ou o artista se degrada. Não cometemos essa afronta àqueles que levam o seu talento aos encontros dos partidos com a sua gente nem aferimos a qualidade do artista ou condicionamos a nossa adesão pelo emblema da lapela..
Este poeta, este compositor, este cantor não consentia ser encurralado por ninguém na força incontida da sua procura permanente da liberdade.

Zeca Afonso recusou-se a andar aos ombros de forças políticas que o reclamavam como bandeira publicitária. Era ele e o mundo concreto em relação directa, existencial. Não era instrumento de ninguém nem peça obrigatória dum sistema que lhe escapava. Era ele e a sua luta. Sem intermediários. Só, por vezes. Amargurado, muitas vezes. Inconformado, sempre, como se a sorte fosse madrasta na divisão da paz e da alegria.
«Estamos sempre a mudar» - dizia - «dentro daquilo que somos profundamente.» Sem insígnias; tão-só um pano vermelho, foi dos últimos pedidos do poeta cujo significado não é difícil adivinhar. Façamos-lhe justiça.

Se a canção activa e militante de vigia e de vigília, de inconformismo e de protesto perdeu o seu intérprete maior, em Coimbra cerraram-se as capas e as batinas em preito de despedida do amigo antigo e do embaixador ilustre da velhinha Academia. E, para quem Coimbra não é terra de passagem, para quem Coimbra é terra onde o corpo parte e a alma fica, «esta Coimbra romântica, de liberdade libertina» como ele lhe chamava, esta Coimbra perdeu esta voz insubstituível, cansada de sonhos e nãos, e sempre solidária com o lado menos fácil da vida. Zeca Afonso, por sistema, estava sempre do outro lado, mesmo depois de na clandestinidade se ter feito dia. Nessa madrugada, nas madrugadas seguintes, não reclamou as honras que a luta travada pela sua voz e a sua viola justificavam, ele que podia ter sido o cantor do reino. o povo soube disso. E, por isso,. anónimo, sem insígnias, desceu às ruas da cidade, porque o poeta «sem ser de ninguém era de todos», como dizia uma voz velhinha na valeta do cortejo». Este homem, que a morte matará devagar, escolhera, em gesto final, o chão de uma escola, sem veludos nem carpetes. Assim viveu, assim morreu. Modesto, livre, igual a ele mesmo.

Em nome dos mesmos valores da arte, não podemos deixar de recordar aqui também um outro artista da sua idade desaparecido quase à mesma hora.

Foram diferentes as vidas, as vozes, as mensagens. Rui de Mascarenhas era emigrante que morreu em tempo de descanso do guerreiro. Lamentamos também esta perda que a centenas de palcos estrangeiros, a milhares de emigrantes levava a música deste pais que amava Portugal.

Ao homem de talento Zeca Afonso - que desaparece, rendemos a nossa homenagem, conscientes de que a sua obra ocupa lugar privilegiado na memória da arte popular. Fazêmo-lo sem habilidades, dúvidas ou subterfúgios. O mar não deixa de ser mar por banhar costas de países com que andemos, eventualmente, desavindos; nem o azul do céu deixa de ser azul por cobrir os campos dos nossos adversários políticos. E é assim a arte, que ninguém pode em exclusivo reivindicar, pois o seu rosto é para ser olhado por toda a gente.

Aplausos gerais.

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