quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Declarações de Voto dos partidos - PCP

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.


O Sr. José Manuel Mendes (PCP):

- Sr. Presidente, Srs. Deputados:

«Plantei a semente da palavra», escreveu José Afonso um dia. E o verso é uma sinédoque dos mundos de insubmissão e criatividade que acordou, com pertinácia e grandeza, ao longo de uma vida.

Lançou à terra inóspita do tempo novas raízes de transformação: o sonho que fermenta, a solidariedade, a confiança nas humanas forças associadas, a coerência, a inteireza moral.

Era «duma vaga pátria carinhosa», cantou «a fome de justiça», as dores e as expectativas comuns, a pobre gente que não entra nas crónicas falantes: a mulher da erva, a cigana andarilha, o Ti Alves aguardando uma recolha que valesse o suor do rosto, o menino do bairro negro, um pastor de Bensafrim, Catarina e o cavador do Alentejo da desolação, o maltês, o emigrante, Miguel Djéjé, tocador de viola no Xipamanine, os trabalhadores para quem a bucha é dura e a tenacidade maior.

Denunciou os esbirros, os vampiros e os eunucos, os canalhas que elegem o oportunismo, em regra os príncipes fautores das desigualdades e da opressão. «Dente por dente» jurou desafrontar o escultor que a PIDE assassinara, os que, tombando no caminho, fertilizam o húmus que robustece a marcha indetível para o devir da fraternidade sem puas.

Nunca o demoveram as perseguições e as hostilidades: incitou, até ao fim, à porfia e à coragem. Foi aos lagos do breu acender fogueiras de libertação e não espargir as lágrimas do conformismo; nos locais de miséria promoveu a indocilidade; disse a luta no plural.

Se «há homens que apodrecem aos rebanhos», só os impulsos metamorfoseadores importam. O desafio perdura, enquanto houver «força/no braço que vinga»:

Que venham ventos
Virar-nos as quilhas
Seremos muitos
Seremos alguém.

Preso pela ditadura fascista, impedido de dar aulas, silenciado na rádio, na televisão e nos jornais, compelido a agenciar o quotidiano numa refrega árdua, Zeca Afonso não desarmou na busca pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo.

A Revolução de 1974 deve-lhe o sinal de partida. Grândola, Vila Morena, não ardeu num fogo de palha; fulgiu como um símbolo do 25 de Abril de sempre, integrado pelas históricas conquistas da rebeldia progressista e incentivadora dos avanços indeclináveis para a construção daquela

cidade
sem muros nem ameias
com
gente igual por dentro
gente igual por fora

de que nos fala uma das últimas belíssimas canções que gravou.
Inigualável inventor musical, senhor de uma comunicabilidade singular, captou e reelaborou, aprofundou e enriqueceu a matriz originária popular dos textos que o mobilizaram.

A sua voz tinha uma cor e um timbre inimitáveis, onde se fundiam rigor e sensibilidade, harmonizando, como em retíssimos autores, o poema, nos seus acentos e ritmos, e a melodia, desencadeando a afectividade, a emoção, o irrecusável senso gregário. Modificou a moldura da música portuguesa desde as baladas, ainda de inspiração coimbrã, às composições ousadas de modernidade que dele fizeram uma personalidade de vanguarda. Influenciou, estética e politicamente, gerações sucessivas.

A sua arte, que acolhia Camões e Fernando Pessoa, Tolentino e a sátira sobre a circunstância, o cancioneiro sentencioso, lírico e brejeiro da tradição oral ou escrita do nosso povo, não enjeitou os contributos das experiências realistas da época que vivemos; é, assim, um nó laborioso de autenticidade em que descobrimos, espelhada, a nossa face ávida de equanimidade e determinação.

Sincero, recto, afável, cativante, o criador de Cantigas do Maio, gerava amigos com uma simplicidade admirável.

Em Portugal e no estrangeiro são incontáveis os que se quiseram a seu lado, independentemente de pontuais discensos, nos momentos ásperos da resistência antifascista como nos eufóricos, nos instantes da doença como nas jornadas em prol de um pais melhor.

Os poderes públicos ignoraram-no; as estações emissoras audio-visuais trataram-no como estranho e de coração pouco dado. Ele não era da estirpe dos que se acomodam. Pagou o tributo - como gostava de lembrar - de uma verticalidade sem máculas.

Pretendeu que não puséssemos luto e cantássemos. Pelos carenciados, pelos sujeitos às diversas maquinações da opressão entre nós e nas lonjuras do orbe, pelo futuro que aí se desenha.

«Somos filhos da madrugada», conhecemos «o que faz falta», aprendemos com ela que a tristeza vem, não raro, da preguiça, e que «há que subir o tom, mudar de fado».

Por isso, ainda que de peito escurecido pela amargura de o havermos perdido, fisicamente perdido, tão cedo, é com o José Afonso que entoamos as cintilações de uma quadra escrita em Caxias, antes das torrentes do renovo:

Outra voz outra garganta
Outra mão que se estende à que tombara
Uma fagulha num palheiro acesa
Ó meus irmãos a luta já não pára.

Aplausos gerais.

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