sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O Tributo num jornal online

Umas palavras sobre a razão do aparecimento do meu blogue "Tributo a Zeca Afonso" e como conheci Zeca Afonso


Diz Fausto: «Em 1975, o MFA convida-me a mim, ao Zeca e ao Adriano para irmos a Angola. Fomos cantar e tocar em sessões prioritariamante dedicadas aos soldados portugueses que lá estavam, com os acordos de Alvor ainda frescos (Janeiro de 1975). O espetáculo na cidadela de Luanda teve mais de vinte mil pessoas. Além de nós, atuaram o Rui Mingas, o Tonito, Lamartine (Carlos) e um conjunto angolano, Merengue. Viajávamos num avião da Força Aérea e fizemos espetáculos em Cabinda…» (in Zeca Afonso – “Livra-te do Medo” de José A. Salvador)

E foi em Cabinda que conheci Zeca Afonso. Tinha vindo da floresta do Maiombe, de Tando Zinze propriamente dito onde tínhamos o aquartelamento, aquartelamento esse que foi entregue ao MPLA. Aguardava no B.Caç.11 (Gorilas do Maiombe) embarque para Luanda onde iria passar à disponibilidade quando fomos convidados para irmos ao Cinema Chiloango onde iriam cantar o Zeca, Fausto e Adriano. Já ouvia Zeca do qual tinha alguns discos e muitas cassetes com música dele. Nessa época não me apercebi que Zeca era uma “persona non grata” para o Estado Novo, pois em Angola a influência da PIDE era muito discreta e nem sabia que existia. Ouvia as canções do Zeca sem problemas e na tropa até parodiávamos com os nossos superiores cantando a “Ronda dos Paisanos” mas com letras nossas as quais já não me lembro.

O Cinema Chiloango estava apinhado de soldados. Eu sentei-me fardado na escadaria que dava acesso ao palco. “Trova do Vento que Passa”, “Os Vampiros” e tantas outras canções que ouvia no meu gravador, passaram por aquele palco. Última canção… “Grândola, Vila Morena”. Aqui o Zeca pediu para quem quisesse, subisse ao palco para cantar. Mal tinha acabado de dizer isto já eu estava com o meu braço enlaçado no dele. E foi assim que em janeiro de 1975 “conheci” o Zeca.

Até 2014, de Zeca Afonso só conhecia as suas músicas tendo-lhe feito uma página musical que me demorou 8 anos a fazer. (2007/2015). Ao integrar-me no FB “Grupo de Amigos de José Afonso” é que me apercebi que havia mais, muito mais, sobre a Vida e Obra do Zeca. Mas aquele FB não tinha os requisitos para o que desejava; falar exclusivamente, sobre tudo a que Zeca dizia respeito. Assim criei o meu próprio FB, onde só é permitido “falar” de Zeca. Assim nasceu o meu “Tributo a Zeca Afonso”. Muitos inéditos foram já conseguidos. Muitos outros foram prometidos, mas até hoje as promessas não passaram de intenção. Mas não há que desanimar, o caminho faz-se caminhando. Com boa vontade de poucos, muito se consegue. E é nesse sentido que o ‘Tributo’ irá continuar. (…)

Nos Cantos Livres, cantando em locais inimagináveis, Zeca foi a voz do povo. Foi um homem humilde, honesto, solidário, que deu o melhor de si: «Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que fica»… e está tudo dito.

Mário Lima


Aqui:

http://www.ofado.pt/?p=6364

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Declarações de Voto dos partidos - PCP

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.


O Sr. José Manuel Mendes (PCP):

- Sr. Presidente, Srs. Deputados:

«Plantei a semente da palavra», escreveu José Afonso um dia. E o verso é uma sinédoque dos mundos de insubmissão e criatividade que acordou, com pertinácia e grandeza, ao longo de uma vida.

Lançou à terra inóspita do tempo novas raízes de transformação: o sonho que fermenta, a solidariedade, a confiança nas humanas forças associadas, a coerência, a inteireza moral.

Era «duma vaga pátria carinhosa», cantou «a fome de justiça», as dores e as expectativas comuns, a pobre gente que não entra nas crónicas falantes: a mulher da erva, a cigana andarilha, o Ti Alves aguardando uma recolha que valesse o suor do rosto, o menino do bairro negro, um pastor de Bensafrim, Catarina e o cavador do Alentejo da desolação, o maltês, o emigrante, Miguel Djéjé, tocador de viola no Xipamanine, os trabalhadores para quem a bucha é dura e a tenacidade maior.

Denunciou os esbirros, os vampiros e os eunucos, os canalhas que elegem o oportunismo, em regra os príncipes fautores das desigualdades e da opressão. «Dente por dente» jurou desafrontar o escultor que a PIDE assassinara, os que, tombando no caminho, fertilizam o húmus que robustece a marcha indetível para o devir da fraternidade sem puas.

Nunca o demoveram as perseguições e as hostilidades: incitou, até ao fim, à porfia e à coragem. Foi aos lagos do breu acender fogueiras de libertação e não espargir as lágrimas do conformismo; nos locais de miséria promoveu a indocilidade; disse a luta no plural.

Se «há homens que apodrecem aos rebanhos», só os impulsos metamorfoseadores importam. O desafio perdura, enquanto houver «força/no braço que vinga»:

Que venham ventos
Virar-nos as quilhas
Seremos muitos
Seremos alguém.

Preso pela ditadura fascista, impedido de dar aulas, silenciado na rádio, na televisão e nos jornais, compelido a agenciar o quotidiano numa refrega árdua, Zeca Afonso não desarmou na busca pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo.

A Revolução de 1974 deve-lhe o sinal de partida. Grândola, Vila Morena, não ardeu num fogo de palha; fulgiu como um símbolo do 25 de Abril de sempre, integrado pelas históricas conquistas da rebeldia progressista e incentivadora dos avanços indeclináveis para a construção daquela

cidade
sem muros nem ameias
com
gente igual por dentro
gente igual por fora

de que nos fala uma das últimas belíssimas canções que gravou.
Inigualável inventor musical, senhor de uma comunicabilidade singular, captou e reelaborou, aprofundou e enriqueceu a matriz originária popular dos textos que o mobilizaram.

A sua voz tinha uma cor e um timbre inimitáveis, onde se fundiam rigor e sensibilidade, harmonizando, como em retíssimos autores, o poema, nos seus acentos e ritmos, e a melodia, desencadeando a afectividade, a emoção, o irrecusável senso gregário. Modificou a moldura da música portuguesa desde as baladas, ainda de inspiração coimbrã, às composições ousadas de modernidade que dele fizeram uma personalidade de vanguarda. Influenciou, estética e politicamente, gerações sucessivas.

A sua arte, que acolhia Camões e Fernando Pessoa, Tolentino e a sátira sobre a circunstância, o cancioneiro sentencioso, lírico e brejeiro da tradição oral ou escrita do nosso povo, não enjeitou os contributos das experiências realistas da época que vivemos; é, assim, um nó laborioso de autenticidade em que descobrimos, espelhada, a nossa face ávida de equanimidade e determinação.

Sincero, recto, afável, cativante, o criador de Cantigas do Maio, gerava amigos com uma simplicidade admirável.

Em Portugal e no estrangeiro são incontáveis os que se quiseram a seu lado, independentemente de pontuais discensos, nos momentos ásperos da resistência antifascista como nos eufóricos, nos instantes da doença como nas jornadas em prol de um pais melhor.

Os poderes públicos ignoraram-no; as estações emissoras audio-visuais trataram-no como estranho e de coração pouco dado. Ele não era da estirpe dos que se acomodam. Pagou o tributo - como gostava de lembrar - de uma verticalidade sem máculas.

Pretendeu que não puséssemos luto e cantássemos. Pelos carenciados, pelos sujeitos às diversas maquinações da opressão entre nós e nas lonjuras do orbe, pelo futuro que aí se desenha.

«Somos filhos da madrugada», conhecemos «o que faz falta», aprendemos com ela que a tristeza vem, não raro, da preguiça, e que «há que subir o tom, mudar de fado».

Por isso, ainda que de peito escurecido pela amargura de o havermos perdido, fisicamente perdido, tão cedo, é com o José Afonso que entoamos as cintilações de uma quadra escrita em Caxias, antes das torrentes do renovo:

Outra voz outra garganta
Outra mão que se estende à que tombara
Uma fagulha num palheiro acesa
Ó meus irmãos a luta já não pára.

Aplausos gerais.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Declarações de Voto dos partidos - PS

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. Presidente:- Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, meus caros José Manuel Mendes, Raul Castro, José Gama, José Carlos Vasconcelos, António Capucho: É fácil falar depois de vós. Antes de mais, para, na qualidade de cidadão português e de irmão que fui - porque assim me considero do Zeca Afonso, vos agradecer as belas palavras que sobre ele aqui trouxestes.

De entre todos aqueles que admiram o Zeca Afonso tenho um raro privilégio: ainda coincidi em Coimbra com ele durante três ou quatro anos; fui a África com o Orfeão e com ele; convivi com ele em Lourenço Marques vários anos e acompanhei-o à guitarra imensas vezes quando ele cantava, como só ele o sabia fazer, o fado clássico de Coimbra - fado que nunca renegou.

Mas já então, quando em Coimbra eu o acompanhava e ele cantava, ele fazia aquilo a que Fernando Pessoa chamou «uma revolução todos os dias dentro da nossa alma». O fado de Coimbra, que é de extraordinária beleza lírica, como sabem, não o satisfazia. E ele germinava uma revolução que veio a trazer da alma para a vida sob a forma das baladas, de que foi o inovador porque o sinal do génio é a capacidade de antecipação. Ele teve essa capacidade.

E qual foi a revolução que ele tirou da alma para a vida? Foi meter a ideia dentro da beleza do fado de Coimbra, foi harmonizar, como compositor, como poeta e como intérprete essa beleza com essa ideia e pôr essa harmonia ao serviço dos bons combates. Ele foi, no bom sentido da palavra, um revolucionário e conseguiu aquilo que nenhum de nós conseguiu: provavelmente, houve discursos geniais por parte da oposição portuguesa mas que morriam no dia em que eram proferidos, enquanto que a sua mensagem era repetida todos os dias por milhares de portugueses que cantavam as suas trovas. Essa era a sua grande força!

Devo dizer que o conheci como só os irmãos conhecem os irmãos. Ele era um «franciscano». Vivia aquela essência do franciscanismo que vive na alma do povo português; interpretou-a como ninguém.

Declarou guerra às convenções. Era homem de uma extraordinária simplicidade. E é preciso ter conhecido o seu pai que - tenho muito orgulho em dizê-lo aqui pois, porventura, nem todos o saberão - foi o mais extraordinário magistrado com que trabalhei em toda a minha vida profissional. Foi juiz da relação de Lourenço Marques e daí não passou porque era completamente surdo. Vivia isolado dos sons do mundo e, convivendo todas as horas com o mundo do direito, atingiu uma perfeição técnica e humana que, provavelmente, nenhum outro magistrado terá atingido na história da magistratura portuguesa - digo isto sem nenhuma espécie de hesitação. Seu pai dominava completamente a técnica jurídica; escrevia primorosamente o português; tinha uma intuição rara do caso jurídico; era um homem excepcionalmente inteligente - a inteligência do Zeca Afonso tem origem conhecida - e era, também e sobretudo, um homem excelente, um homem bom, tal como sua mãe, ainda viva, uma piedosa e bondosíssima senhora, que deve estar a sofrer muito neste momento.

O irmão dele, João Afonso, que também cantava muito bem o fado de Coimbra, era meu companheiro de mesa de café em Lourenço Marques e meu companheiro do grupo dos democratas de Moçambique. Continuámos lá a convivência de Coimbra. Conheço-o como conheço as minhas mãos.

A beleza das trovas de Zeca Afonso tem, em meu entender, três ou quatro origens identificadas.

A primeira é a beleza do fado de Coimbra que ele nunca renegou e que soube conciliar, exactamente, com a beleza das suas baladas.

A segunda é a circunstância curiosíssima de tocar mal viola: só sabia três ou quatro posições na viola.

A terceira origem reside no facto de José Afonso não saber música. Ele tinha que memorizar os sons. Porventura, poucos de vós imaginais o que significa ser capaz de fazer o que ele fez sem saber escrever música. Ele tinha que memorizar os sons que criava e isso não é fácil, porque é o mesmo que um analfabeto tentar decorar os Lusíadas ou fazê-los de cor, sem saber escrever os versos que cria.

Pois bem, o Zeca Afonso sabia três ou quatro posições na viola e não sabia escrever música. Esse facto imprimia às suas composições a simplicidade que lhes permitiu serem entendidas pelo povo português. Não era uma música rebuscada; era uma música à base de um, dois tons, nunca mais. Essa simplicidade permitiu-lhe poder comunicar com o povo, que é, ele também, simples, também não rebuscado, também não sabedor dos rigores da música sofisticada.

Outra das origens da beleza da sua composição - a quarta - é a circunstância de, em África, ter contactado com o folclore africano. Quem viveu em África sabe que muitas das suas composições - sobretudo depois que por lá passou - têm uma originalidade que só é possível a quem viveu em África e conviveu de perto com o folclore africano e soube entendê-lo na sua essência.

Por outro lado, Zeca Afonso era um homem que tinha como supremo referencial o homem do povo, o homem simples. Ele próprio era um homem simples, despretensioso. Não o fazia por jactância, fazia-o naturalmente: desprezava as convenções. No Algarve , salvo erro em Olhão, conviveu com os pescadores mais humildes e tem composições que lembram esse período em que por lá passou.

Mas uma outra grande fonte da originalidade e da beleza das composições de Zeca Afonso é a sua bondade como homem e é preciso que isso se registe aqui. Só a bondade, quando se consegue traduzir em arte, atinge os píncaros de beleza que atingiram as suas composições. A verdade é que ele é verdadeiramente um fenómeno. O que teria sido este homem se tivesse outros instrumentos para traduzir o seu imensíssimo talento?

Foi um artesão da canção popular portuguesa. Mas, talvez aí esteja o seu mérito, porque também as mais inspiradas composições do nosso folclore são de origem desconhecida ou têm origem em pessoas que também não sabiam música e que também não tinham outros dons que não fossem os do próprio génio.

O Zeca Afonso, para mim, é fundamentalmente um homem que soube interpretar o sentimento popular e a sensibilidade popular; que meteu a ideia dentro do fado de Coimbra; que harmonizou a ideia e o fado e os pôs ao serviço dos bons combates. Abril deve-lhe o seu hino; Portugal deve-lhe a ele, ao seu sacrifício e às suas trovas, como a muitos outros combatentes pela liberdade, a própria liberdade.

Referiu o José Carlos Vasconcelos - outro grande amigo dele - que na Balada de Outono, e é verdade, ele disse: «Eu não volto a cantar». Terá sido dos poucos enganos do Zeca Afonso. Ele vai voltar a cantar; o povo lhe emprestará a sua voz e cantará os seu poemas e a sua trova até que a sua mensagem reencarne definitivamente no homem português.

Morreu o trovador. Viva a sua trova!

Aplausos gerais.

Declarações de Voto dos partidos - PSD

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. António Capucho (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Associando-nos ao voto de pesar pela morte de José Afonso, começarei por citar o poeta:

[...] O mito é, na maior parte das vezes, uma pista errada porque fundada mais na imaginação das pessoas do que nas contingências falíveis da acção humana individual ou colectiva. É preferível que o próprio objecto do mito desfaça serenamente o equívoco que lhe deu origem para que ele mesmo não se convença de um mérito que por justiça efectivamente nunca lhe devia ter pertencido.

[...] Só nos sentimos úteis quando somos solicitados e isso compensa-nos de muitas frustrações que o mito esquece quando nos simplifica, reduz ou exalta.

José Afonso não é um mito e recusou sê-lo. Não seremos nós a contribuir para a sua mitificação.

Mas foi. É e será um nome essencial na cultura portuguesa.
Como compositor, autor e intérprete distinguiu-se como um dos maiores valores contemporâneos da música popular portuguesa.
Escreveu versos simples e curtos, de fácil apreensão, mas nem por isso desprovidos de qualidade e da eficácia que os justificavam. Versos que harmonizou e equilibrou notavelmente com a sua música, a obra musical de José Afonso representa uma relação profunda e íntima com o homem e a realidade concreta que o circundava.

A tudo isto juntava um dom excepcional: uma voz única, límpida, vibrante e profunda.

A resultante era uma unidade quase perfeita no género musical que adoptou: palavras e música quanto bastavam, nem a mais, nem a menos; depois aquela voz; finalmente, como consequência necessária, um poder e uma força comunicativa extremamente fortes.

Porque politicamente nos separava um abismo, estamos particularmente à vontade para lembrar José Afonso, também no que transcende a sua carreira como músico.

Homem do povo, de costas voltadas para o poder e rejeitando o carreirismo, distinguiu-se pela sua simplicidade e desprendimento pelos valores materiais, mas também pela coragem e frontalidade com que assumiu uma luta com as armas de que dispunha e que melhor do que ninguém sabia utilizar.

Na luta desenvolvida, designadamente pela minha geração no mundo académico, contra o totalitarismo e o obscurantismo, José Afonso teve um papel relevante na sensibilização e mobilização das mentalidades.

E teve talvez a suprema distinção da sua carreira quando uma criação sua foi escolhida para detonar o movimento militar que desencadeou a Revolução de Abril.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, para terminar estas simples palavras em homenagem ao homem, ao músico e ao poeta, permitam-me que vos leia um pequeno excerto do poema de José Afonso Jesus no Horto:

Homem viagem da democracia.
Homem península vítima da hora.
Cobrem-lhe a pele os Ciclos Vespertinos.
E a morte ronda quando não demora.

Aplausos gerais.

Declarações de Voto dos partidos - PRD

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. José Carlos de Vasconcelos (PRD):

- Sr. Presidente, Srs. Deputados: A morte de José Afonso deixou-nos a todos mais sós, mais tristes e mais pobres. A todos os que combatemos a ditadura, a todos os que lutámos pela liberdade e pela justiça, a todos os que temos um ideal, ainda que não seja exactamente - ou, se calhar, aparentemente - o mesmo que o seu, a todos que amamos a musica, a poesia ou a arte, a todos que o admiramos, enfim, e ainda mais, a todos os que, além do resto, fomos seus amigos e companheiros, a morte de José Afonso deixou-nos, a todos, mais sós, mais tristes e mais pobres.

Com José Afonso desapareceu não só a figura primeira e tutelar da nova música popular portuguesa, como um dos maiores criadores de sempre da nossa música e um dos maiores criadores da canção popular contemporânea. Com José Afonso desapareceu um símbolo vivo do 25 de Abril, um símbolo de Abril ainda antes de Abril, uma voz ímpar livre, bela, clara, rebelde, corajosa, fraterna da nossa pátria e do nosso povo.

José Afonso começou por ser e já não era pouco que só isso tivesse sido - um grande e, logo aí também inconfundível cantor do fado de Coimbra. Depois, criou a balada, que não só representou uma substancial inovação e transformação, relativamente à velha canção de Coimbra, como em muito ultrapassou e constituiu o primeiro e decisivo passo na nova música popular portuguesa, desde a inicial Balada do Outono, melancólica e belíssima, até à frontalmente denunciadora e emblemática Os Vampiros, que marca a arrancada poderosa da cantiga de intervenção e protesto, tendo a servi-la a palavra e os poemas tantas vezes, curiosamente, com alguma influência surrealista -,do poeta que ele, José Afonso, sempre foi em todos os actos da sua vida, na acepção mais vasta e profunda do termo.

Aprofundando e ampliando esta vertente, a sua música e arte ganharam cada vez maior qualidade, assim mesmo, ou por isso mesmo, sendo cada vez mais empenhadas, humanas e fraternas. José Afonso chegou a atingir, ou pelo menos a roçar, a genialidade em tantas e tantas das suas cantigas. José Afonso transformou-se não só na voz de um protesto e de uma geração como na voz de um sonho e de um futuro. Exprimiu como nenhum outro as dores, os anseios e as esperanças colectivas de um povo o nosso povo.

Assim, nada mais natural (diria, até, inevitável) que, quando chegou o libertador 25 de Abril, José Afonso lhe tivesse dado a voz cantando que «o povo é quem mais ordena». Nada mais natural, tão natural como o sol ou o vento, que ele se transformasse, como eu disse, num símbolo vivo do 25 de Abril. Por isso, ainda, nada mais natural que, mesmo apesar da sua morte, a sua voz continue viva pelas ruas, pelos campos, pelas praias, pelas fábricas da nossa Pátria.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, permitam-me ainda que, sem seguir nenhum texto preparado, recorde um pouco esse querido amigo e companheiro de tantos dias e tantas horas, desde Coimbra até aos recitais que fizemos um pouco por todo esse país. Permitam-me que recorde uma noite de Primavera em que, nas margens do Mondego, o amigo me pôs a mão no ombro e disse «vou-te cantar uma coisa que fiz de novo» - era, exactamente, a Balada do Outono. Permitam-me que recorde com emoção essa balada que começou a mudar a música portuguesa e, afinal muito mais, neste país. Balada que, hoje, ganha um especial significado quando diz:

[...]
Água das fontes calai
Ó ribeira chorai
Que eu não volto a cantar
[...]

No seu último e único espectáculo no Coliseu - vai para três ou mais anos -, nós vimos o Zeca, já doente, incapaz de segurar os papéis contendo as letras das canções (que, aliás, nunca conseguiu saber de cor) e, com lágrimas, mais no coração do que nos olhos, seguimos esse seu último espectáculo - que nós, os seus amigos, sabíamos que era de facto o último que ele poderia dar.

Recordo, também - vai fazer 25 anos -, o Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra. Aí, porque, na altura, a repressão policial era muito forte, ele, não por menos coragem - sempre a teve toda - mas para não prejudicar outras formas de intervenção de estudantes, perguntou-me se seria adequado cantar o seu Coro da Primavera que, depois, acabou por cantar, pela primeira vez. Neste ele diz:

[...]
Ergue-te ó sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores.
Ouvem-se já os clamores,
Ouvem-se já os tambores
[...]

Só quem viveu esse e outros momentos (em que ele batia na viola com os dedos, simulando os tambores), este «movimento» que crescia, é que sabe que o «som» de José Afonso era a esperança não só de uma geração, não só dos seus amigos, não só dos seus companheiros mas de todo um povo que sentíamos que estava atrás de nós.

Muitos dos que estão nesta Câmara talvez tenham discordado muitas vezes de algumas atitudes políticas do Zeca Afonso. Isso é legítimo, só que, como seu amigo e como pessoa que o conhecia bem, deixem que lhes diga que, para além da aparência de uma certa agressividade, o que estava sempre na base das suas atitudes era um homem livre, um homem fraterno, um homem generoso. Poder-se-á ter discordado do Zeca Afonso, mas nunca ninguém o poderá acusar de alguma vez ter tido algum gesto ou de ter praticado algum acto para obter quaisquer benefícios ou quaisquer dividendos. Sempre foi um homem que não teve nada a ver com o poder, não teve nada a ver com oportunismos, não teve nada a ver com transigências de qualquer ordem. Por isso, morreu pobre. Este país tem uma dívida de gratidão para com ele. Morreu à «margem» e o seu enterro constituiu uma impressionante manifestação de pesar. Foi ainda uma manifestação desse seu espírito livre e rebelde: aos amigos não pediu grande música, nem sinfonias, nem nada; pediu para não irem de luto; pediu, antes, que se cantasse no seu funeral - como se cantou - e que o seu caixão fosse, apenas, coberto com um pano vermelho. Era um pano vermelho sem nenhum símbolo, sem nenhuma sigla, sem nenhuma palavra, porque o Zeca nunca se deixou «enfileirar», amordaçar, sempre foi um homem livre dentro dos seus ideais de liberdade, de justiça, de bem-estar para este povo que ele amou.

Por isto, por tudo que ele representa, Portugal está de luto, nós estamos de luto, mas sabemos que o Zeca Afonso, com tudo o que representa, com as suas cantigas, continuará a ser uma voz livre, fraterna e belíssima, no meio do nosso povo.

Por isso o PRD se associa ao voto de pesar pela sua morte e a tudo que se faça para que o País cumpra a dívida de gratidão que tem para com ele.

Aplausos gerais.

Declarações de Voto dos partido - CDS

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. José Gama (CDS):

- Sr. Presidente, Srs. Deputados: Sem luto porque o poeta o não quer; sem insígnias porque a sua obra é de todos e é esta a sua vontade; sem hipocrisia que a nossa formação rejeita e a memória do cantor reclama, votamos a favor do voto de pesar pelo Dr. José Afonso. Não o fizemos por rotina.

Nunca nos moveu a indiferença quando a morte de um homem acontece. Como podia sê-lo agora, quando este desaparecimento deixa um rasto de fogo na sua geração e no seu tempo? Não o fogo das armas. Destas dizia Zeca Afonso: «Se algum dia tivesse de lutar com armas na mão, não sei se seria capaz de o fazer». Também por isto a sua figura se engrandece. Era o fogo da crença de quem acredita na verdade da sua luta. Travada de sol a sol, de Janeiro a Janeiro, entre manhãs de liberdade e noites longas de prisão. Luta vinda do vigor das gentes que chega das «terras do bravo», temperada com a alegria de quem encontra em «cada esquina um amigo». Ouvi-o nos meus tempos de Coimbra quando, em assembleias inflamadas, homens vigiavam os outros homens em noites de palavras cantadas em estrofes de protesto e inconformismo.

Eu não era, concerteza, dos mais inconformados, mas era, de certeza, dos maiores admiradores do seu canto e do seu verso.
Soube da sua presença, mais tarde, em festas de raiz político-partidária, festas onde não estivemos porque a nossa luta conhecia outro estilo e outros campos de combate. Seria estultícia nossa, todavia, pensar que é por esta circunstância que a arte mingua ou o artista se degrada. Não cometemos essa afronta àqueles que levam o seu talento aos encontros dos partidos com a sua gente nem aferimos a qualidade do artista ou condicionamos a nossa adesão pelo emblema da lapela..
Este poeta, este compositor, este cantor não consentia ser encurralado por ninguém na força incontida da sua procura permanente da liberdade.

Zeca Afonso recusou-se a andar aos ombros de forças políticas que o reclamavam como bandeira publicitária. Era ele e o mundo concreto em relação directa, existencial. Não era instrumento de ninguém nem peça obrigatória dum sistema que lhe escapava. Era ele e a sua luta. Sem intermediários. Só, por vezes. Amargurado, muitas vezes. Inconformado, sempre, como se a sorte fosse madrasta na divisão da paz e da alegria.
«Estamos sempre a mudar» - dizia - «dentro daquilo que somos profundamente.» Sem insígnias; tão-só um pano vermelho, foi dos últimos pedidos do poeta cujo significado não é difícil adivinhar. Façamos-lhe justiça.

Se a canção activa e militante de vigia e de vigília, de inconformismo e de protesto perdeu o seu intérprete maior, em Coimbra cerraram-se as capas e as batinas em preito de despedida do amigo antigo e do embaixador ilustre da velhinha Academia. E, para quem Coimbra não é terra de passagem, para quem Coimbra é terra onde o corpo parte e a alma fica, «esta Coimbra romântica, de liberdade libertina» como ele lhe chamava, esta Coimbra perdeu esta voz insubstituível, cansada de sonhos e nãos, e sempre solidária com o lado menos fácil da vida. Zeca Afonso, por sistema, estava sempre do outro lado, mesmo depois de na clandestinidade se ter feito dia. Nessa madrugada, nas madrugadas seguintes, não reclamou as honras que a luta travada pela sua voz e a sua viola justificavam, ele que podia ter sido o cantor do reino. o povo soube disso. E, por isso,. anónimo, sem insígnias, desceu às ruas da cidade, porque o poeta «sem ser de ninguém era de todos», como dizia uma voz velhinha na valeta do cortejo». Este homem, que a morte matará devagar, escolhera, em gesto final, o chão de uma escola, sem veludos nem carpetes. Assim viveu, assim morreu. Modesto, livre, igual a ele mesmo.

Em nome dos mesmos valores da arte, não podemos deixar de recordar aqui também um outro artista da sua idade desaparecido quase à mesma hora.

Foram diferentes as vidas, as vozes, as mensagens. Rui de Mascarenhas era emigrante que morreu em tempo de descanso do guerreiro. Lamentamos também esta perda que a centenas de palcos estrangeiros, a milhares de emigrantes levava a música deste pais que amava Portugal.

Ao homem de talento Zeca Afonso - que desaparece, rendemos a nossa homenagem, conscientes de que a sua obra ocupa lugar privilegiado na memória da arte popular. Fazêmo-lo sem habilidades, dúvidas ou subterfúgios. O mar não deixa de ser mar por banhar costas de países com que andemos, eventualmente, desavindos; nem o azul do céu deixa de ser azul por cobrir os campos dos nossos adversários políticos. E é assim a arte, que ninguém pode em exclusivo reivindicar, pois o seu rosto é para ser olhado por toda a gente.

Aplausos gerais.

Assembleia da República - Voto de pesar - dia 24

Voto de pesar - dia 24 de 1987 no período da tarde - O Sr. Secretário (Reinaldo Gomes):

José Afonso morreu ao cabo de prolongada e dolorosa enfermidade, de um percurso humano, cívico e político que lhe grangeou o respeito, o apreço de vastas camadas do nosso povo. Cidadão inconformado, assumiu, desde a juventude, a luta pela liberdade e pela democracia, suportando a prisão e o ostracismo, o silenciamento hostil da obra singularíssima com que abriu rumos novos na música portuguesa. Cantor da insubmissão, da confiança, dos dias ásperos e das horas acesas da
construção de Abril, foi sempre, acima de tudo, uma personalidade fraterna, desafiadora, radical. Não temendo a controvérsia, moveu-se nos terrenos da exigência estética, ideológica e cultural, combatendo todas as formas de acomodamento ou de opressão.

A Revolução de 1974 deve-lhe o sinal de partida, um cantar particularmente luminoso, testemunho de energia colectiva e de apego melódico às raízes populares.

Poeta, compositor, intérprete inigualável, desencadeou com a sua voz as tempestades da mudança e da porfia. Sonhou uma pátria justa e livre; por ela se bateu com extrema coerência e dignidade.

A sua morte, ocorrida após longos momentos de sofrimento, durante os quais suscitou uma emocionante onda de solidariedade nacional e internacional -pesem embora as omissões dos poderes públicos- empobrece-nos de forma irremediável, mesmo sabendo que continuará connosco no devir da esperança.

Por isso, a Assembleia da República, reunida, em sessão ordinária a 24 de Fevereiro de 1987, exprime o seu profundo pesar pelo desaparecimento físico de José Afonso, figura imperecível da música e da cultura portuguesas.

O Sr. Presidente: - Tal como combinámos, vamos apenas proceder à votação deste voto de pesar, visto que as declarações de voto passarão para o período de antes da ordem do dia da próxima quinta-feira.

Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade,

Gostaria de comunicar à Câmara que a Mesa também se associa a este voto de pesar e sugiro que guardemos agora um minuto de silêncio.

A Câmara aguardou, de pé, um minuto de silêncio.

Um gesto que quis dizer muito

De Rui Pato

"Já depois de ser um cantautor conhecido, aplaudido, ouvido em toda a parte, já profissionalizado, o Zeca veio oferecer o seu "Venham mais cinco" a mim, ao meu pai e à minha mãe , como prova de reconhecimento aos que , contra a vontade de muitos, numa época de enormes dificuldades e de perseguições políticas, em que os verdadeiros amigos e admiradores eram poucos , o convenceram a gravar as suas baladas, lhe trataram dos primeiros contratos, conseguiram improvisar estúdios, lhe trataram das capas dos textos, dos arranjos, dos acompanhamentos, lhe aturaram as neuras e a sua recorrente vontade de desistir... Esta dura fase, que o fez não desistir e continuar, ser o nosso Zeca de hoje, não consta das biografias...

Mas ele era um homem profundamente reconhecido."

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

EP "Cantares de José Afonso" - 1964 - 1ª edição censurada

Sobre este disco:

"Capa do EP CANTARES DE JOSÉ AFONSO. Lisboa: Columbia, E16 40023, 1964, 1.ª edição censurada e retirada de circulação. O pretexto foi a fotografia a preto e branco realizada por Eduardo Varela Pécurto, um dos habitués de A Brasileira, por sugestão e direta orientação de Rocha Pato que preparou um cenário marcado pelo quotidiano humilde de crianças que à época habitavam nuns casebres de madeira junto ao Choupal de Mondego. Um discurso desalinhado, que em tom de denúncia mostrava o que os bilhetes postais tentavam esconder."

Fim de citação

Teria sido mesmo a capa o motivo para a censura do disco ou haveria outra razão para que o lápis azul tivesse funcionado?

Feita a pesquisa, verifiquei que foi o tema "Ó Vila de Olhão" e não a capa o motivo da censura desta 1ª edição, e pelas seguintes razões:

Nesta foto, no disco que estava no arquivo de uma estação de rádio, a faixa "Ó Vila de Olhão" está com lápis azul e riscada com um prego. Se só essa faixa estava riscada com um prego é sinal que as outras três faixas podiam ser tocadas. A capa está intocável, sem o famoso lápis azul, logo não está censurada.



Em 1969, na 2ª edição deste EP, a faixa é substituída por uma versão instrumental interpretada pelo "conjunto de guitarras de Jorge Fontes".


Este vídeo confirma o atrás exposto.



... e o tema censurado.


Outra foto com este grupo de crianças

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Livro "Cantares de José Afonso"

Carlos Loures

"Com o Manuel Simões e o Júlio Estudante, criámos em Tomar onde na altura eu trabalhava e vivia, uma pequena editora, a Nova Realidade."

Manuel Simões


Em 1966 sai uma 1ª edição do livro "Cantares de José Afonso" pela Nova Realidade - Tomar

Em 1967 sai uma 2ª edição com texto de Rui Mendes, que estava previamente anunciado para a 1ª edição, extraviou-se algures e só saiu nesta 2ª edição.

"A ideia de reunir em volume as canções de José Afonso nasceu no âmbito do grupo da pastelaria Sírius, da rua da Sofia, em Coimbra, onde chegavam ecos da colecção projectada em Tomar. Foi o Rui Mendes quem a lançou, com o ar de coisa espontânea, mas sentia-se que se tratava de um plano arquitectado e cultivado há algum tempo, à espera de concretização. Pedido o consenso ao autor, então a leccionar na Beira, em Moçambique, a quem se tinha mandado, para eventuais correcções, a transcrição dos textos gravados a que era possível ter acesso, a sua plena adesão ao projecto constituiu uma motivação ainda mais encorajadora, sobretudo pelo envio de materiais inéditos... (...) A primeira edição, correspondendo à fase artesanal da «Nova Realidade» (a mais estimulante e rica de experiências pelo contacto directo com o leitor), foi vendida de mão em mão esgotou-se num curto lapso de tempo."

Rui Mendes


"Dadas as fraternas relações que mantinha com José Afonso, cedo projectei que o primeiro livro da colecção seria a publicação das letras das suas canções. Chamei-lhe Cantares".

Como Carlos Loures refere, a PIDE em maio de 1968 por "despacho destes serviços", o livro "Cantares" foi "PROIBIDO DE CIRCULAR NESTE PAÍS".

A BEM DA NAÇÃO

A foto da capa, é da autoria do jornalista Rocha Pato, pai de Rui Pato​

Do livro 25 anos da AJA.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

“Livro das Dedicatórias”

Ao cimo da Rua das Covas, residia a velha prostituta conhecida por "c... d'aço", designação brejeira de quem escrevera com carvão na parede da modesta casa, assinalando o local onde muitas gerações de estudantes ali tiveram "aulas" de educação sexual.

Com setenta anos, na única janela, fincara os olhos em dois jovens que desciam para a Sé Velha, Zeca e o amigo de peito António dos Santos Silva, ou o Toneca como era conhecido no meio estudantil.

Ao "boa tarde" dado por Zeca, a velha convida-os para entrar. Uma ligeira hesitação mas a um "Não tenham medo que não vos como..." lá decidiram entrar para a pequena sala. Aberta uma lata de biscoitos, acompanhados por um cálice de licor, ali ficaram a conversar coisas do passado dela. Num álbum de fotografias lá estava ela de tricana antiga, noutra com outras raparigas, e outra com vários homens, alguns de capa e batina... "Este aqui era o doutor Mário, muito bom rapazinho! Os meninos como se chamam?

Depois trouxe um livro, o "livro das dedicatórias". Dedicatórias dos seus "alunos" que partiram de Coimbra, ou ao tornarem lá para reuniões de curso, nele tinham escrito mensagens saudosas - "Lembrando aquelas noites dos nossos vinte anos...". "Este é médico em Mangualde... Este era juiz, já morreu... Este é farmacêutico, quando vem a Coimbra passa sempre por cá... E este, adivinham quem é este?" - Assinado Sidónio Pais! O que foi presidente da República. (1) Entre nomes de lentes, médicos, juristas, engenheiros, figurava também o do Cardeal Cerejeira.

"No lago do Breu,
Meninas perdidas eu sei,
Mas só nestas vidas me achei,
No lago do Breu"

(1) Sidónio viria a ser assassinado na estação do Rossio, a 14 de Dezembro de 1918. Foi morto a tiro por José Júlio da Costa, ex-sargento do exército e militante republicano (Fernando Pessoa admirava-o e gostava muito dele enquanto chefe de Estado, chamou-lhe Presidente-Rei).

fontes:

- "Zeca Afonso, antes do mito" de António dos Santos Silva
- blogue "Guitarra de Coimbra" de Octávio Sérgio


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Catarina

Catarina Efigénia Sabino Eufémia (Baleizão, Beja, 13 de Fevereiro de 1928 — Monte do Olival, Baleizão, Beja, 19 de Maio de 1954) foi uma ceifeira portuguesa que, na sequência de uma greve de assalariadas rurais, foi assassinada a tiro, pelo tenente Carrajola da Guarda Nacional Republicana.

José Afonso imortalizou-a no tema "Cantar Alentejano", letra e música de sua autoria.

Do Comité Portugal na Holanda (Tulipa Vermelha) - 1974



Da Revista "O Militante" do PCP nº 172- 1989

O assassinato de Catarina Eufémia é um expressivo documento do que foi o fascismo em Portugal.
A lição da sua vida e da sua morte será guardada pelos tempos fora não só entre os operários agrícolas do Alentejo mas por todo o país.

Catarina Eufémia

Chamava-se Catarina
o Alentejo a viu nascer

(...) (~) em 1928, na aldeia de Baleizão, concelho de Beja.
Segunda filha de um casal de camponeses pobres, Catarina Eufémia bem cedo experimentou as dificuldades de sobrevivência dos «sem terra» em zona de latifúndio.
Cresceu com os trigos, contou os anos pelas ceifas e por escola teve a lonjura da campina, onde a escrita se fazia com o gadanho e a foice.
Ainda criança perdeu o pai, José Diogo Baleizão, e abandonou as bonecas de trapos, farinha e papel, para colaborar no sustento da família, constituída pela mãe, pela irmã mais velha Maria Eufémia, por ela (Catarina) e a mais nova, Delmira da Assunção.
A adolescência passou-a nas terras do Monte Olival, propriedade do agrário Fernando Nunes, gerando lucros com fome. calor, sede e magra jorna.
Aos 17 anos casou com um conterrâneo, o «Carmona», então trabalhador da CUF, e muda-se para o Barreiro onde nasceria a primeira filha do casal, Maria Catarina. Porém, o companheiro de Catarina é despedido e o agregado familiar volta para Baleizão.

Corriam, na época, tempos de grandes fomes e heróicas lutas. O proletariado agrícola alentejano fervia de revolta face às aviltantes condições de trabalho, sendo remetido a uma dieta espartana de pão duro, alho e bacalhau seco.
A aldeia de Baleizão não destoava na paisagem económico-social do Alentejo dos anos 50, e Catarina Eufémia, que se recusara a aceitar Um salário de miséria, discutido com José Vedor, feitor de Fernando Nunes, palmilhava diariamente 12 quilómetros até ao Monte Campano, por a jorna ser ali mais alta do que no Monte Olival.

Em 1954, a luta do campesinato alentejano ganhou novas e redobradas energias

É nesta lida, dia a dia mais pesada, que se vai gerando o futuro António Gaspar, segundo filho e primeiro rapaz de Catarina, nascido em Baleizão.
Já experimentada na resistência à ofensiva de fome e exploração, Catarina Eufémia ingressa no PCP com 24 anos e, pouco depois, fazendo parte do Comité Local, lidera a organização das mulheres da sua terra.
Entretanto, o marido fora colocado em Quintos, como cantoneiro, e para lá se encaminha Catarina onde, no Outono de 1953, nasce o seu terceiro rebento, o José Adolfo. Contudo, não havendo condições de permanência na «casa dos cantoneiros», Mãe Catarina regressa com a sua prole a Baleizão.


Em 1954, a luta do campesinato alentejano ganhou novas e redobradas energias, como, nos dá conta «o camponês», publicado em Março desse ano: «A participação das mulheres camponesas na luta por melhores jornas é um grande passo em frente no reforçamento da Unidade. Em muitos lados, elas vão à Praça de Jornas, fazem parte de Comissões com os homens e constituem também as suas próprias Comissões. Esta rica experiência deve ser seguida, chamando as camponesas à luta pela conquista de melhores jornas nas ceifas».
Tal como em anos anteriores, os agrários e o Governo aprontavam-se para imporem o pagamento de jornas baixas e impedirem, por qualquer meio, a resistência dos explorados. Porém, a tais manobras e intimidações se opunha, cada vez com mais firmeza, a luta unida e organizada dos trabalhadores.
E assim que, por todo o lado, se vão multiplicando amplas comissões de unidade, com homens e mulheres, nas Praças de Jornas, em herdades, montes e ranchos, conduzindo, sem tréguas, a luta contra o fascismo e os latifundiários.

Entretanto, já em Fevereiro desse ano, a GNR insultara uma comissão de 25 mulheres em Vale de Vargo e espancara uma delas, tendo o Tribunal de Serpa condenado 3 camponesas a 18 dias de prisão.

Nos campos crescia a agitação social e Baleizão não era obviamente diferente dos demais baluartes de resistência. Aí, perante a recusa sistemática do agrário Fernando Nunes em pagar a jorna pretendida para a apanha das ‘favas, os camponeses deliberaram entrar em greve e, a partir de sábado (15 de Maio), ninguém foi trabalhar.

Dado o impasse da situação, na terça-feira seguinte (18 de Maio), um grupo de camponeses onde figurava Catarina Eufémia, vai ao Monte Olival para tentar negociar, mais uma vez com o feitor, o aumento. Em vão!
Contudo, no dia seguinte, o conflito iria sofrer dramática evolução, pois Fernando Nunes apostara quebrar a Unidade dos grevistas e mandara buscar um rancho a Penedo Gordo, pagando 18$00 aos homens e 12$00 às mulheres.

A notícia correu célebre entre as gentes de Baleizão, que, perante esta acção divisionista, decidem ir falar aos trabalhadores do rancho de Penedo Gordo.
A justeza da posição reúne 300 baleizoeiros que tomam o caminho do Monte Olival, no intuito de esclarecerem o rancho de fora quanto aos motivos porque lutavam a exortá-los à Unidade. «Não foram precisas muitas falas para os trabalhadores se entenderem. Estavam todos de acordo, não se trabalhava com salários de fome».(2)

No entanto, alguém previra o natural acordo e solidariedade, e teimando em vergar a vontade popular, chamara a GNR, que prontamente cerca o rancho do Penedo Gordo, obrigando-o a trabalhar sob a ameaça das armas e pela jorna determinada pelo «senhor da terra».
O Povo de Baleizão, ao tomar conhecimento da provocação, avança unido para a herdade, determinado a demover o grupo «contratado», mas depara com forte barreira de guardas republicanos que, de espingardas aperradas, lhe impede a marcha.
Perante a pertinaz resistência do proletariado agrícola, inabalavelmente convicto dos seus direitos e firme nos objectivos, os guardas deixam passar um grupo de 15 mulheres lideradas por Catarina Eufémia.
Grávida e com o pequenito José Adolfo, de 8 meses, ao colo, esta avança decidida, confiante e sem temor, para o diálogo.
E então que, detrás de um monte de favas, lhe salta traiçoeiramente ao caminho o facínora tenente Carrajola que, recém-chegado de Beja com reforços, lhe aponta uma pistola-metralhadora, perguntando: «O que queres, bruta?»
«O que eu quero é pão para matar a fome aos meus filhos! »
A resposta soou em três tiros desfechados à queima-roupa.
Mortalmente ferida, tombou de pé Catarina Eufémia, vítima da besta fascista.

(...) Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
(...)C)

Morreu de pé e sem medo «como deve saber morrer um membro do Partido à frente das massas, encabeçando a luta de classe». (3)
No dia 19 de Maio de 1954, às 11 horas da manhã, Catarina Eufémia, mulher esforçada e mãe corajosa, destemida comunista, ultrapassou a morte e, vencendo o tempo, reergueu-se em vermelha bandeira dentro de cada um de nós.

Catarina — orgulho do proletariado agrícola alentejano!
Catarina — símbolo de firmeza e exemplo de militante do Partido Comunista Português!
Catarina Eufémia — a-sempre-viva na nossa memória!

Porque...

(...) Quem viu matar Catarina
Não perdoa a quem matou! (‘)~


(‘) AFONSO, José — do poema «Cantar Alentejo»
(2) COELHO, José Dias — A Resistência em Portugal, 2. ed., Porto, Inova, 1974, p. 20
(3) CUNHAL, Álvaro — Homenagem a Catarina Eufémia, in «Avante!», n. 2 (24 de Maio de 1974)

«Militante» nº172 de 1989

Daqui:

http://www.pcp.pt/actpol/temas/pcp/catarina/index.htm

http://www.pcp.pt/actpol/temas/pcp/catarina/militante-1989.htm

Documento da GNR que relata a morte de Catarina Eufémia

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Canto Livre - 12-12-1981

Canto Livre com Zeca Afonso no comício de encerramento da manifestação contra o governo AD/Balsemão.


(Pinto Balsemão foi primeiro-ministro entre janeiro de 1981 e junho de 1983)

Com Janita Salomé, Serginho e Júlio Pereira

Fonte: CGTP-IN

18-10-1980 - 10º Aniversário da CGTP-IN, no Coliseu dos Recreios.

Com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, o catalão Pi de la Serra, o uruguaio Quintin Cabrera, Sérgio Godinho, Carlos Mendes, Paco Bandeira, Paulo de Carvalho, Luísa Bastos e José Mário Branco, grupo de cantores que foi apelidado “Os 10 Magníficos”.

"Os 10 Magníficos" e entre eles... Paco Bandeira.

Mudam-se os tempos...

Podemos ainda ver nas fotos na participação de Zeca; Janita Salomé, Júlio Pereira, Guilherme Inês e Carlos Salomé.

Fonte: CGTP-IN


Magazine do Jornal "Alavanca" da CGTP-IN