terça-feira, 25 de setembro de 2018

DESCULPA LÁ, Ó ZECA!

José Afonso já estava doente. Era 1984, salvo erro. Zeca e Zélia, a mulher, haviam mudado de Setúbal para uma casa em Azeitão. “Era o único sítio sossegado!”, conta Zélia. Vigarice de empreiteiro, os esgotos mal feitos provocaram uma espécie de fossa a céu aberto que chegava até ao quintal da casa de Zeca. O cheiro e os corrimentos afectavam o bairro inteiro. A informação chega ao jornal Tal&Qual, então dirigido por José Rocha Vieira. Fraudes e trapaças com saneamento básico eram mato na altura (e ainda hoje). Zeca era (é e será)) uma referência da Música e da Democracia. Zeca doente com fossa à porta? Claro que é notícia. Com a bondosa conivência de Zélia, vai-se falar com o indignado Zeca, que impõe uma condição. “Eu moro aqui, mas isso não é notícia! Somos muitos moradores no bairro! É preciso denunciar esta vergonha! São todos prejudicados! Não quero que fales de mim...” Zeca era assim. Ainda que usado e abusado por muita gente e instituições, nunca condescendeu nem pactuou com esquemas de favores. Tímido, porém extrovertido, saltava que nem fera quando lhe tocavam nos princípios mais profundos.

Quando morreu, em 1987, saíram à rua, em Setúbal, muitos milhares de pessoas. Foi enterrado, a seu pedido, numa campa rasa do cemitério de Nossa Senhora da Piedade. A Sociedade Portuguesa de Autores, liderada por José Jorge Letria, quer agora que os restos mortais de Zeca sejam trasladados para o Panteão Nacional. A família, com Zélia à frente, está contra a pomposa honraria. Francisco Fanhais, amigo e companheiro, já disse: “Deixem-no estar! Está onde quis estar!”

Ao brade Zeca fica como Património Musical da Humanidade, tal como a de Amália Rodrigues. Os dois nunca se haviam encontrado cara a cara até certo dia de 1984. Amália era considerada, por muita gente de Esquerda, como uma cantora do regime do Estado Novo. Muita coisa os separava, mas no primeiro aniversário do Clube de Jornalistas, Eugénio Alves teve a ideia de juntar os dois, durante um jantar em Lisboa. Para Eugénio, jornalista, não foi fácil convencer o amigo Zeca. Jorge Cobanco, homem da Rádio, encarregou-se de convencer Amália. Eugénio não disse a Zeca que Amália iria estar presente. E foi Amália que foi ter com Zeca. “Estava com medo da reacção dele!”, conta Eugénio Alves. Amália, comovida, e ao mesmo tempo receosa, pergunta-lhe: “Zeca! Acha que eu canto bem?” Zeca responde: “Então se a senhora não canta bem, quem é que canta bem?!” Terá sido a primeira e a última vez que Zeca e Amália se encontraram ao vivo. Amália está hoje, legitimamente, no Panteão.

Zeca ficou muito chateado quando viu o título da notícia no Tal&Qual: “Fossa à porta de Zeca Afonso”.

Desculpa lá, ó Zeca!

Victor Bandarra - jornalista

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