sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O franciscano laico

(Zeca) Revolucionou a estrutura musical e poética da canção portuguesa. Não foi apenas um grande compositor e um intérprete excepcional. Foi um poeta. E de certo modo um profeta. Um revolucionário e um franciscano laico, fraterno, despojado. Um homem que tinha o coração aberto ao mundo e nada queria para si. Um trovador que a cantar encantava e incomodava. Um poeta que era capaz de avisar a malta e juntar muita gente, mas que nunca se deixou arregimentar. Talvez as sociedades não consigam suportar a força subversiva de um tal despojamento, nem a ternura irresistível que havia na sua voz.

Por isso não é possível integrá-lo em nenhum sistema e em nenhum esquema. Há mortos que não são «recuperáveis». Há mortos que não se deixam sepultar.

Zeca Afonso não é como os falsos marginais que hoje ditam as modas ou são serventuários do poder. Ele é da outra margem. Aquela margem onde não há lugar para o autoritarismo nem para a subserviência. Ele é da margem esquerda, que é a margem do coração e da camaradagem. É aí, à sombra de uma azinheira, que ele continua a cantar para nós uma canção de liberdade.

Manuel Alegre

10.02.1993

foto: Rocha Pato (pai de Rui Pato)

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