segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Câmara Municipal de Coimbra homenageia Zeca Afonso

"José Afonso escreveu, musicou, cantou, deixou a herdar. Foi mensageiro do seu próprio pensamento, mas mais. Num tempo português em que o chamado "folclore" vestia as cores garridas que a política de Salazar, executada por Ferro, lhe tinha destinado, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e muitos poucos mais procuravam, junto de quem sabia, os vestígios de uma música do povo que a ele se assemelhava – musicalmente rica, poética, funcional. E tão fundamental que o próprio Zeca viria a valer-se dos ambientes dessa música para a construção da sua obra. “Grândola Vila Morena” é um exemplo de tal construção, mas há na obra de José Afonso sinais quase intocados da música do povo português, ali convertido em guardião e divulgador ..."

Manuel Rocha*

*Manuel Rocha é professor de Música no Conservatório de Música de Coimbra. Músico (violino) na Brigada Victor Jara, acompanhou diversas vezes José Afonso, nomeadamente, numa digressão a Moçambique.

daqui:

https://www.cm-coimbra.pt/index.php/areas-de-intervencao/cultura/atualidade/item/5234-camara-municipal-de-coimbra-homenageia-zeca-afonso-de-10-a-12-de-agosto

Imagem: Invólucro dos discos na Emissora Nacional, com a anotação lateral das datas de emissão das faixas de um dos 1º discos de Zeca, em 78 rpm de 1953 (lado A - Contos Velhinhos. Lado B - Incerteza) que fez parte da exposição levada a cabo pela Câmara Municipal de Coimbra em agosto deste ano.

domingo, 24 de setembro de 2017

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Manuscritos de Zeca Afonso - A Carta

Uma carta toda ela escrita em poesia.

Como se sabe, em 1967 estava Zeca Afonso a lecionar na Beira. Reza em tudo o que li que Zeca não acabou o contrato e regressou a Portugal antes do fim do ano letivo. Por esta carta tal não aconteceu. O ano letivo em Moçambique era de 18-9-1966 a 29-7-1967. Zeca regressa em Agosto como aqui o refere. Mas isso por ora não importa. Importa sim, a riqueza textual e poética desta missiva escrita à Lurdes e ao Zé, que não sei quem serão.

Sabe-se que Zeca não foi para Faro, mas sim para o Liceu Nacional de Setúbal. Seria depois expulso do ensino.

Tive o cuidado de separar o texto e é extraordinário. Um texto de poesia que nos dá a grandeza mental e o génio de Zeca Afonso.

Tete, 14/6/67
Colégio S. José

Carta para Lurdes e Zé

Vocês não escrevem
porque estão zangados?
Amuados?
Desiludidos?
E somos nós os visados?
Os apontados?
Os aludidos?
Se não,
porque estamos dados
como desaparecidos?

Sabeis que vamos daqui para fora
a cem à hora?
Num barco janota
que nos transporta
para a bancarrota?
Parte em Agosto,
em Agosto!
Pelo sol posto,
até aposto!

Chama-se Angola,
levo a viola.
numa sacola:
Toco as “janeiras”
às passageiras
solteiras.
Digo alarvadas
às burguesinhas casadas.
Ou durmo a sesta
como uma besta.

Eu estou em Tete
cumprindo um frete
docente.
Deixei a Zélia,
deixei a Lena,
deixei a Jana,
o Pingente.
Na Beira chata
que é uma caca
e uma bravata
imprudente.

Sou todo ouvidos
para os amigos
antigos.
Contem histórias
das mais recentes
memórias.
Como se dão
dentro desse paredão?

Se estais mais gordos,
se estais mais magros,
se estais mais ricos
[Coitados].

Eu estou cansado,
estou esvaído
tenho o coco
carcomido.

Mas vou ficar
como novo
dentro do ovo,
junto do povo.
Mas vou ficar como fino
a cantar
“o meu menino”.

Preciso dum tacho raro
na Comercial de Faro.
A rima é para dar com “aro”,
"ignaro",
é ainda mais caro.

Mas estou a ver o manguito
que me faz o Monteirito.

Se vou falar ao Cardeira,
dou com as ventas na torneira.
Diz o Monteiro com mágoa
que não faz filhoses de água.

Já falei ao meu irmão,
diz que está cheio o vagão.
Diz o Cardeira: Concorra,
e a rima agora concorda.
Vou escrever à Direcção
Geral da Corporação.

Vou meter o requerimento
para ver se ingresso a contento.
Vou meter a papelada
para ver se engrosso a manada.

Viva a Lurdes. Viva o Zé
Viva eu, Viva, rapé.

Amigo Afonso
(o José)

P.S.
Até dois de Julho aqui
Depois volto donde vim.
Virei depois às horais
Duas (?) semanas*, não mais.

Notas:

*parece, pela espessura de tinta, que esta parte foi acrescentada posteriormente.

O Monteiro aqui referido, era um antigo colega do Zeca na Comercial de Faro, e foi quem deu ao Zeca o tal "lapisito" para o Zeca acabar a tese «Implicações substancialistas na filosofia sartriana».

Nas biografias existentes refere que Zeca Afonso quando saiu de Lourenço Marques para a Beira, lecionou no Liceu Pero de Anaia, de 14-9-65 a 30-7-1966, tendo revogado para o ano seguinte onde leciona de 18-9-1966 a 29-7-1967. Não há qualquer referência de Zeca ter dado aulas em Tete. A carta de Zeca refere Tete e o Colégio S. José e diz que deixou a Zélia, a Lena e a Jana (Helena e Joana, as filhas), sinal que enquanto elas estavam na Beira, Zeca lecionava em Tete. De Tete à Beira de carro são cerca de 8h de caminho (583 km).

Em "P.S." Zeca refere que ficará em Tete até 2 de Julho e que após isso, regressará à Beira e voltará a Tete para as "horais" (penso que aqui Zeca queria dizer "orais", que fazem parte dos exames finais e não "horais" relativo a horas).

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Hélder Costa

“Conheci o Zeca em Coimbra, numa altura em que ele já não vivia lá mas ia lá muitas vezes. A primeira vez que o ouço era um caloiro, tinha acabado de chegar. Estava na República do Prá-Kis-Tão, eram três ou quatro da manhã quando comecei a ouvir um gajo a cantar. Os mais velhos disseram logo que era o Zeca. O Zeca subia, sozinho, a cantar com uma voz extraordinária. O primeiro impacto foi, portanto, de um romântico, algo relacionado com o romantismo do século XIX”

“Ele tinha amigos em várias repúblicas, na Prá-Kis-Tão, nos Incas, na Rás-Te-Parta, e ia dormindo por lá. Foi-se criando uma amizade entre a malta. Dava-nos conselhos engraçadíssimos, como dizer-nos que devíamos comer bolos com creme porque alimentavam mais. O Zeca passou a vida a dar-me conselhos”

“Lembro-me perfeitamente que um dia estava na Rás-Te-Parta e o Zeca estava a dedilhar umas coisinhas, que haviam de dar origem à “Menino d'oiro”, e da alarvidade daqueles que diziam que aquilo era uma “mariquice”, todos indignados porque já não era o fado de Coimbra”

“Ele dormia várias vezes lá em casa. Um dia, estava eu a dormir e ouço: “Ó Hélder, Hélder!”. Levanto-me e estava o Zeca no fundo do corredor, de perna cruzada. Diz-me: “Este cão vai ladrar toda a noite?”

“A última vez em que estivemos juntos foi num dia absolutamente tétrico. Foi o dia em que o Cavaco foi a eleições e ganhou com maioria absoluta. O Zeca ligou-me para ir ver as eleições em casa dele em Azeitão. Disse-me que a Zélia não estava e que estaríamos sozinhos. Foi um dia inteiro em pânico. (…) Lembro-me que, quando a transmissão acaba, o Zeca diz-me:

'Ó Helder, e agora?”

daqui:

http://www.esquerda.net/dossier/o-zeca-passou-vida-dar-me-conselhos/47159