sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O espetáculo que a ditadura teve medo de proibir

Em Lisboa, a realização do I Encontro da Canção Portuguesa, reunindo músicos da oposição ao Estado Novo, realizou-se num ambiente de grande tensão e dele saiu a senha para a revolução que, dias depois, derrubou a ditadura. Dois fiscais da censura assistiram a tudo.

Francisco Galope

16:44 Sexta feira, 28 de Março de 2014

Naquela noite de 29 de março de 1974, o ambiente era pesado no Coliseu dos Recreios e à volta dele. Marcado para as 21 horas e 30, o I Encontro da Canção Portuguesa começaria com mais de meia hora de atraso.

As razões, segundo conta José Jorge Letria (um dos organizadores e músico que atuou), deveram-se a uma intensa discussão que se desenrolou nos bastidores entre os representantes da entidade organizadora, a Casa da Imprensa (CI), e os da ditadura de Marcelo Caetano. O próprio subsecretário de Estado da Informação e Turismo, Caetano de Carvalho, deu-se ao trabalho de comparecer pessoalmente. Foi sugerir à Casa da Imprensa o bom senso de suspender o espetáculo. "O argumento era o de a censura ter recusado dezenas de canções, tendo proibido que se cantassem versos algumas de outras", lembra José Jorge Letria a propósito de um concerto, cujos pretextos foram a angariação de fundos para a obra de beneficência da CI e a entrega dos prémios de imprensa relativos a 1972.

Nem que fosse só um verso

Mas os organizadores estavam determinados a avançar, nem que fosse com apenas um verso em cada canção e avisam o subsecretário de Estado que, com o ambiente criado dentro e à volta do Coliseu, a suspensão do espetáculo pode ter consequências imprevisíveis. Após as diligências formais levadas a cabo nos dias anteriores, foi também nos bastidores que se decidiu que os músicos proscritos pelo regime José Afonso e Adriano Correia de Oliveira atuariam nessa noite. Afinal, não havia nada escrito que os proibisse de subirem ao palco. O que existia era apenas uma lista de cantigas censuradas. Entre elas o Venham mais cinco de José Afonso. Curiosamente, Grândola Vila Morena foi tida como inofensiva pelos censores. E seria nessa noite que ascenderia ao estatuto de hino subversivo.
No dia 15 de março, a Casa da Imprensa enviara as letras das músicas para aprovação da Direção dos Serviços de Espetáculos (DSE). Mas a lista de aprovações e reprovações só chegou momentos antes das nove e meia da noite para servir a Caetano de Carvalho como argumento para a Casa da Imprensa cancelar. "Nós pedimos que eles nos sugerissem isso por escrito, o que não quiseram fazer".

Enquanto, a discussão tomava o seu rumo, na sala de espetáculos a abarrotar, os cerca de sete mil espetadores pateavam e entoavam músicas proibidas.

Bastões, gás lacrimogéneo e cães.

Entretanto, na rua estavam mais de mil pessoas a tentar entrar no recinto. E mesmo depois de confrontadas com a impossibilidade, não arredam pé, espalhando-se pelas imediações. Ficaram para o que desse e viesse. A situação estava bastante tensa e o Coliseu cercado por centenas de elementos da polícia de choque, equipados com canhões de água e de tinta azul, bastões, gás lacrimogéneo e cães.

O espetáculo encerrou com José Afonso, tido entre os pares como o fundador do movimento de música de protesto. Zeca partilhou a apoteose em fraterna camaradagem com os outros músicos. No palco entrelaçaram-se os braços e os corpos oscilaram da esquerda para a direita, acompanhando a cadência alentejana. O público seguiu o exemplo e entoou "Grândola Vila Morena" (do álbum Cantigas do Maio, de 1971, e até aí uma inofensiva homenagem ao cante alentejano). Seguiu-se o inócuo Milho Verde. E novamente Grândola. À uma e meia da manhã, os espetadores saíram da sala abraçados e a cantar aquela cantiga. Entre eles alguns militares do MFA. Terá sido depois deste espetáculo que os militares de Abril decidiram passá-la como senha da revolução na Rádio Renascença, à meia noite e vinte da madrugada de 25 de Abril de 1974, em vez de "Venham mais cinco".

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