sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Testemunho de José Niza - Parte V

O primeiro disco que produzi para o Zeca foi "Eu vou ser como a toupeira" gravado em Madrid, em 1972. Nesse álbum ele queria incluir a canção "A morte saíu à rua" cuja letra, embora de forma não explícita, denunciava o assassinato do pintor comunista Dias Coelho pela PIDE. O poema foi cortado pela censura. O Zeca ficou indignado. E eu não me conformei.

O Director Geral de Informação da altura era o Dr. Pedro Feytor Pinto, nascido e licenciado em Coimbra, que tocava umas pianadas e tinha pertencido à Tuna Académica, onde conheceu o Zeca. Era ele o chefe da censura. Telefonei-lhe e convidei-o para almoçar. Durante o almoço fino, na Varanda do Chanceler, convenci-o. "Afinal, quem é que sabia quem era o Dias Coelho?" Saí do restaurante com a autorização e uma conta choruda para o Arnaldo Trindade pagar. Não há almoços grátis.

Quando gravava, o Zeca gostava de estar sempre acompanhado pelos amigos das cantigas, mesmo que não entrassem no "filme". Aquilo proporcionava um clima de bom convívio, com copos, conversas e muito humor. Para essa gravação eu reservei um grande apartamento nas Torres de Madrid onde todos ficávamos, e que tinha duas vantagens: uma grande sala, onde podíamos ensaiar à noite; e uma localização próxima da saída da cidade para os Estúdios Cellada, a 12 kms da capital.

A equipa que acolitava o Zeca tinha como suporte principal a viola do Carlos Alberto Moniz e integrava o galego Benedicto, grande amigo do Zeca, a Teresa Silva Carvalho e o José Jorge Letria.

O arranque da gravação foi complicado. Ninguém sabia verdadeiramente o que o Zeca queria. Nem ele era capaz de se explicar. A disciplina que o José Mário Branco tinha imposto no disco anterior ("Cantigas do Maio"), a que o Zeca se tinha submetido com alguma reserva, foi substituída por algum excesso de improvisação e de experimentalismo. Começámos por gravar as canções mais simples. Ao segundo dia, numa pausa da gravação, eu andava com o Zeca a passear no corredor. Passámos em frente da porta do estúdio 2 e ouvimos uma viola muito bem tocada. Ficámos ali, o guitarrista estava a ensaiar. O Zeca parou e disse: "É mesmo disto que estamos a precisar! Ó Niza vai lá dentro e convida o gajo para se juntar à malta!" Fui lá, expliquei-lhe ao que ia. O tipo achou o convite algo insólito mas aceitou. Este acaso do destino foi uma enorme mais-valia para o disco. O Carlos Villa, assim se chamava o guitarrista, deu um grande contributo para a sua valorização.

Uma das canções que o Zeca queria incluir – "O avô cavernoso"- era um tema dedicado ao Cardeal Cerejeira (ou ao Salazar, ou aos dois...) com uma música e um poema completamente fora do seu estilo habitual. O surrealismo do tema só podia ter um acompanhamento musical e coral igualmente insólito. Defendi que, ao contrário das regras, o papel da viola deveria ser o de destruição da música e do poema.

A ideia era um bocado abstrusa, mas o Zeca decidiu testá-la. Era o tal experimentalismo de que atrás falei, Coube-me a mim acompanhá-lo. A primeira coisa que fiz foi desafinar a viola. Isso mesmo: desafinar a viola! O Zeca começou a cantar o tema, tal como o tinha criado, e eu a desconstruí-lo com notas desafinadas e acordes dissonantes: era a loucura lúcida! O resultado foi de espanto e aprovação. Com os coros aconteceu mais ou menos o mesmo. Mas faltava ainda o tempero das percussões. E aí caímos num impasse. Parámos a gravação para reflectir.
Nesse intervalo fui ao bar do estúdio e trouxe de volta uma cerveja e um "bocadillo de jambón" com aquele pão branco e estaladiço. Fui comer para o estúdio, os microfones estavam ligados e o Zeca estava a descansar na "régie". Às tantas, ia eu a passar ao lado de um dos microfones e dei uma dentada no pão. O Zeca deu um grito de satisfação: "Eh pá, era mesmo este som que eu queria para a percussão!" O técnico pôs a correr a fita onde estava a voz do Zeca e a minha viola. E eu fiquei no estúdio a morder no "bocadillo" ao ritmo da música. Acho que devíamos ter mandado isto para o Guiness.

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