sábado, 27 de setembro de 2014

Prosema II

Para iludir a dúvida, privados de equipagens, nenhum dos habituais pontos de referência vem em meu auxílio. Procuro um ancoradouro distante, fora do estreito mundo em que me movo. Inútil: bichos, objectos minúsculos, paredes brancas pontilhadas, o botão da campainha à minha esquerda. A memória retira-me a sua cobertura instantânea. Tento galgar esta padiola dentro da minha cabeça e daí lançar-me à desfilada sobre uma estepe daninha ou cair do alto da montanha onde guardo o meu ninho de águias. Digo-vos que só pretendo A Grande Casa Alugada da Minha Infância, o vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara de que uma criança existia. O velho desapareceu inesperadamente num pequeno porto do Zaire e deixou-me só.


Caxias, 13-5-1973

P.S. - O velho missionário

Tinha Zeca três anos quando partiu no vapor «Mouzinho» (penso que seria o navio Mouzinho de Albuquerque que fazia ligação entre Portugal e Angola e serviu para o transporte não só de colonos mas também de tropa) à guarda de um tio advogado que seguia para Angola em lua-de-mel. O tio, afadigado com os deveres de recém-casado, esqueceu-se do sobrinho que, sentindo-se abandonado, ancorou à proteção de um frade, mais tarde recordado no seu Prosema II (este) escrito na prisão de Caxias. Este padre ancião de barbas, que o passeava pelo convés do navio e lhe contou histórias, «acompanhou-o» pela vida fora.

In "Livra-te do Medo" de José A. Salvador

Sem comentários:

Enviar um comentário